Cara para bater 18/12/2016
- J.R. GUZZO - revista VEJA
Está ficando cada vez mais raro na vida pública brasileira, nos dias que correm, encontrar quem esteja disposto a fazer a coisa certa apenas porque é a coisa certa – mesmo quando a moral, os bons costumes e a lógica deixam claro que é a única coisa a ser feita.
O que importa acima de tudo, hoje em dia, é fazer a coisa que dá certo; não é necessariamente um pecado, mas é diferente.
Nem é tão importante assim, na verdade, fazer o que dá certo. Mais que tudo, o que vale é não fazer nada que possa dar errado.
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Trata-se da teoria e da prática do “risco zero”.
Os grandes princípios, nessa maneira de encarar as responsabilidades públicas, se concentram em umas poucas definições.
Por exemplo: não se pode “dar a cara para bater”. Ou: a maior virtude de um político é ser “profissional”; seu pior defeito é ser “ingênuo”.
Atos de coragem pessoal, por essa cartilha, são estritamente desaconselhados; quando expõem o autor à “impopularidade”, então, passam a ser vistos como pura e irreparável estupidez.
É indispensável, diante de qualquer problema a ser resolvido, dizer que “o povo não pode pagar a conta”.
Nunca é o “momento adequado” para tomar uma providência, por mais necessária que seja, se ela significar algum sacrifício.
É muito mais perigoso não prometer do que não cumprir.
Um político eficaz deve acreditar, talvez como a regra primordial de todas, que dá mais certo tratar a população segundo os seus interesses do que segundo os seus direitos.
Nada mais natural, num país em que os políticos vivem à beira do xadrez, na mira da polícia e na dependência de sentenças judiciais para manter o cargo, que o pavor da vaia tenha assumido tanta importância.
É a preocupação suprema: faça qualquer coisa, submeta-se a qualquer papel, mas não se arrisque, jamais, a ser vaiado num lugar público.
Só mesmo no Brasil de hoje se entende, para ficar num exemplo recente, que tenha sido levada a sério pelo governo, como parece que foi, a possibilidade de que o presidente da República não comparecesse às cerimônias fúnebres que se seguiram ao desastre aéreo com a equipe da Associação Chapecoense de Futebol.
Poucos fatos, nos últimos anos, mexeram tanto com as emoções do público brasileiro quanto essa tragédia.
Mas até pouco antes dos funerais a informação oficial era que o presidente Michel Temer não iria – ou iria praticamente escondido, como a ex-presidente Dilma Rousseff na final da Copa do Mundo de Futebol de 2014, no Maracanã.
Felizmente, inclusive para si próprio, ele foi.
Mas é uma completa aberração que os maiores nomes do mundo político brasileiro (quer dizer: maiores pelo tamanho dos cargos) estivessem tão longe da cerimônia quanto o diabo da cruz.
Pior: não poderia mesmo ser diferente.
Imagine-se, por exemplo, se seria possível a presença do senador Renan Calheiros e do deputado Rodrigo Maia no palanque das autoridades em Chapecó; se algum assessor, por acaso, lhes tivesse dado a ideia de comparecer, ambos teriam passado mal só de ouvir.
Temos, então, o seguinte: o presidente do Senado Federal (cargo hoje em tumulto) e o da Câmara dos Deputados não andam livremente no próprio país.
Pode?
E o ex-presidente Lula, que é descrito por tanta gente, a começar por ele mesmo, como o maior líder popular que o Brasil jamais teve em toda a sua história?
Esse, então, estava em Cuba, junto com a sucessora. Foi a um outro enterro; não ocorreu a ele, e talvez menos ainda a ela, correr o risco de estar junto do povo brasileiro naquela hora.
O ex-presidente, aliás, é um dos pioneiros nesse tipo de sabedoria política – conseguiu não ir a uma única partida da mesma Copa do Mundo de 2014, que colocava entre as maiores realizações do seu governo e da sua vida.
Lula, há anos, só aparece em eventos em que a plateia é controlada por seguranças do seu partido ou dos “movimentos sociais”.
De novo, é a anomalia: o soberano das massas populares brasileiras não pode sair às ruas neste país.
Ele e quantos mais?
Quase todos.
Na verdade, quantos políticos teriam coragem de ir a uma manifestação de rua como as que têm acontecido de 2015 para cá?
Quantos se sentem realmente seguros para ir a um restaurante ou atravessar um saguão de aeroporto?
Só o anonimato dá segurança; do jeito que as coisas vão, daqui a pouco nossos representantes começarão a ir para as sessões do Congresso Nacional com aquelas máscaras pretas que a polícia costuma usar em operações secretas.
Chegamos a um ponto em que a regra principal para o exercício da vida pública no Brasil é não aparecer em público.