As 10 medidas de combate à corrupção 22/12/2016
- Gabriel Heller e André Wainer*
Nas últimas semanas, o País assistiu à tentativa da Câmara dos Deputados de enterrar o projeto de iniciativa popular conhecido como “10 medidas contra a corrupção”, capitaneado pelo Ministério Público Federal (MPF).
Embora seja senso comum que o nosso Parlamento desperta mais em seus eleitores sentimentos de frustração e vergonha do que de convicção e representação, assim como é posicionamento absolutamente majoritário que o Ministério Público e a Operação Lava Jato colaboram para a moralização da vida pública brasileira, maniqueísmos seguem contraindicados, e isso vale também para as 10 medidas.
É certo que as 10 medidas são, em geral, acertadas e necessárias, tendo potencial para conduzir o Brasil a um grande avanço e a uma posição de vanguarda no que se refere à legislação de combate à corrupção.
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Algumas delas inclusive satisfariam compromissos assumidos há décadas pelo Brasil em convenções da ONU.
Contudo, há pontos questionáveis no pacote, e, em especial, na postura messiânica adotada pelo MPF, a qual parece estar sendo uma força contrária ao sucesso da empreitada.
Antes de mais nada, vale lembrar que o cidadão não podia assinar parcialmente seu apoio às 10 medidas: ou apoiava o pacote como um todo, incluindo suas controvérsias, ou não faria parte do movimento dos milhões contrários à corrupção.
O MPF ainda convidou a população leiga a ratificar cirurgias invasivas no ordenamento jurídico brasileiro sem informá-la sobre a complexidade e os diversos tipos de implicações das propostas apresentadas.
Considerando-se o grau de interesse e revolta que – felizmente – o tema gera na sociedade brasileira, num momento em que o termo corrupção é trending topic nacional, esses fatos representaram um preço que o cidadão, quando não desconhecia, não se importou em pagar.
Como consequência, mais de dois milhões de brasileiros avalizaram um documento que, a despeito de sua apresentação como iniciativa popular, traz consigo o alargamento das competências e poderes do MP, sob a aparência de uma luta do bem contra o mal.
Além disso, parte considerável das mudanças pretendidas relaciona-se ao direito penal ou ao processo penal como um todo, e não estritamente à corrupção, fato que, via de regra, também deve ter fugido ao conhecimento dos signatários.
Se tivessem denominado suas propostas de “10 medidas contra a impunidade”, os procuradores teriam sido mais fieis ao espírito do projeto, mas isso poderia mitigar sua aura de heróis junto à população nessa “cruzada moralizante”.
Ademais, embora o pacote seja coerente enquanto instrumento de combate à corrupção, a constitucionalidade de algumas propostas é duvidosa, e, se muitas cabeças pensantes as defendem sem questionamento, é porque não se dignam ao esforço de imaginar-se processadas por algo que não fizeram.
Viabilizar condenações penais sem comprovação dos atos específicos de corrupção praticados (Medida 2), execução antecipada da pena (Medida 4), convalidação de provas ilícitas (Medida 7) e possíveis exageros em prisões preventivas (Medida 9) são os principais exemplos de potencial inconstitucionalidade que merece reflexão mais detida e discussão mais ampla.
À parte o debate sobre o mérito das medidas, causa espécie a maneira com que o MPF exerceu a gestão do projeto até aqui.
Trata-se de uma miríade de iniciativas marcadas pelo minguado diálogo com outros atores a elas relacionados e pela indiferença em relação aos efeitos negativos que poderiam causar às pessoas e instituições que não compactuassem irrestritamente com as posições do órgão.
Isso é especialmente alarmante porque a promoção do interesse público é responsabilidade e obrigação de todos os órgãos e servidores públicos; o MP exerce um papel de procurador da sociedade, mas não lhe cabe qualquer monopólio, tampouco a busca por uma posição proeminente sobre outras instituições nessa seara.
Em diversos momentos, todavia, os procuradores pareceram não enxergar isso, impregnados por um esprit de corps de salvação nacional.
Nessa senda, o MPF incluiu, entre as suas medidas, diversas iniciativas discutidas no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), articulação estatal integrada por dezenas de órgãos públicos que militam na área, dando pouquíssimo crédito ao colegiado e não consultando os demais integrantes quanto às alterações que promoveu nos textos originais.
De súbito, o órgão decidiu tratar os projetos da maneira que lhe convinha.
Em termos de marketing, a ideia das 10 medidas foi um sucesso retumbante.
A população, desejosa de um Brasil mais limpo, abraçou largamente a causa, e sobraram assinaturas para cumprir o limiar constitucional da iniciativa popular.
Ao mesmo tempo, veio o efeito colateral: certo de seu protagonismo e respaldado pela população, o MPF parece haver-se imbuído de um excesso de confiança.
Isso se refletiu na forma como o projeto de lei se desenvolveu na Câmara dos Deputados.
Talvez acreditando que a batalha já estava vencida, o MPF continuou trabalhando à revelia das instituições parceiras, não dialogou suficientemente com as lideranças partidárias e ainda passou a ousar.
Interagindo diretamente com o relator do projeto, conseguiu incluir no pacote medidas “de última hora”, não apresentadas previamente, não debatidas e não referendadas pela população.
Um exemplo foi a tentativa de ganhar proeminência na gestão da cooperação jurídica internacional no Brasil – em dissonância às práticas dominantes nos países desenvolvidos, já que, nos raros casos em que o Ministério Público exerce esse papel, ele costuma integrar o Poder Executivo.
Essa estratégia acabou cobrando seu preço: na reta final, até mesmo órgãos públicos que combatem a corrupção passaram a se posicionar publicamente contra alguns pontos da proposta; boa parte das medidas introduzidas tardiamente sem as assinaturas da população sequer chegou ao Plenário da Câmara; os deputados, por fim, destroçaram o projeto e, como se não bastasse, incorporaram, ao pouco que dele restava, o tema do abuso de autoridade.
O Ministério Público é certamente movido por boas intenções, mas ele dificilmente terá sucesso enquanto se alçar à condição de patrono de uma missão civilizatória do Brasil e não atentar para a necessidade de um trabalho forte de sensibilização também junto à classe política.
Diversas de suas propostas são devidas e urgentes; porém, descamba para a ingenuidade ou pretensão querer ver aprovadas, integralmente, medidas que transformam o direito penal brasileiro – e mexem com interesses escusos dos parlamentares –, simplesmente porque referendadas em bloco por parte de uma população desesperada pelo fim da corrupção e suscetível a criar e abraçar heróis e mitos.
De todo modo, tentar conferir a algumas medidas de interesse do próprio órgão origem popular é desafiar a legitimidade do Congresso Nacional para representar o restante dos cidadãos e as prioridades do País.
Ninguém nega a grave crise de representatividade do Parlamento, mas isso está longe de significar que qualquer projeto elaborado pelo MPF com assinaturas de milhões de pessoas, entre as quais muitas que leram somente o irrefutável título “medidas contra a corrupção”, deve ser aprovado tal como apresentado.
Nada obstante, se o projeto das 10 medidas possui suas idiossincrasias, a Câmara dos Deputados, ao desfigurá-lo, brindou-nos mais uma vez com seu corriqueiro show de horrores.
Achou que não bastava rejeitar propostas eventualmente equivocadas ou inconstitucionais e, em contra-ataque surreal, deformou o projeto de lei e transformou-o em um Frankenstein “anti-medidas contra a corrupção”, enxertando tentativas de inibir o MP e o Judiciário sob o falacioso epíteto de “abuso de autoridade”.
Naquela madrugada, em rara convergência entre governo e oposição – “casualmente” quando o tema era o combate à corrupção –, adversários ferrenhos se uniram contra as medidas.
Com isso, conquistaram o justo desprezo nacional, inclusive de pessoas e grupos que viam com olhos críticos algumas das propostas.
Na última semana, o Ministro Luiz Fux, com um desfibrilador decisório, deu sobrevida às 10 medidas, ordenando ao Senado Federal que devolvesse à Câmara o projeto, em função do “contrabando legislativo” praticado e de outras irregularidades aparentes.
Como o plenário do Supremo Tribunal Federal resolverá a questão, é uma incógnita – tão grande quanto o resultado legislativo das 10 medidas, uma vez que o Congresso pode, simplesmente, engavetar o projeto de lei.
Por um lado, é inegável que, considerado o histórico de insucessos do combate à corrupção no Brasil, urge a aprovação de medidas que o aprimorem.
Por outro, talvez, assim como defendeu o juiz Sérgio Moro no caso do projeto de abuso de autoridade, o momento de maior crise econômica e institucional desde o advento da Constituição de 1988 não seja o mais adequado para essa indispensável reforma no nosso direito penal.
Enquanto as incógnitas não são desvendadas, podemos torcer para que o Ministério Público dispense o heroísmo da representação popular, privilegiando o diálogo e a concertação para o sucesso do projeto de combate à corrupção, e que paralelamente cumpra, com as ferramentas de que hoje dispõe, seu imprescindível e dificílimo papel de guardião da ordem jurídica e do regime democrático.
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*Gabriel Heller é advogado e auditor em Brasília, André Wainer é servidor federal da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental