A tara do adesismo na política brasileira 23/12/2016
- Francisco Ferraz*
Sendo a política predominantemente concebida no Brasil como “o que ocorre em torno do Estado”, não há vacina poderosa o suficiente para imunizar os políticos da forte atração centrípeta do Estado e que se manifesta sob a forma de um adesismo generalizado a quem o ocupa que tende à unanimidade.
Essa é uma das “taras” mais peculiares da cultura política brasileira que caracteriza o comportamento das elites políticas com relação aos governos, sejam eles quais forem.
Só não tem base política no Legislativo aquele governante que não a quiser.
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Na realidade, qualquer novo governo no Brasil, se não fechar as portas do poder, será invadido.
Não há barreira programático/ideológica, partidária ou ética que seja capaz de conter o vício tentador da adesão ao poder, aos cargos, mordomias e o acesso às facilidades para a corrupção.
A expressão mais acabada dessa característica da cultura política brasileira se manifesta nas ondas de unanimidade nacional que varrem os cenários políticos, uma vez definido o vencedor.
Foi assim com os governos da Arena durante o regime militar; com a campanha das Diretas Já, transferindo-se logo após para o processo de constituição da Aliança Democrática e ao governo Tancredo/Sarney; com o Plano Cruzado, episódio emblemático do adesismo, quando o PMDB elegeu todos os governadores estaduais, com apenas uma exceção!
O mesmo processo repetiu-se com o impeachment de Collor e, logo em seguida, na formação do governo Itamar.
Fernando Henrique, com o Plano Real, obteve vitória em primeiro turno e, navegando mais uma onda de quase unanimidade, não teve problemas para conquistar maioria no Congresso, sempre que se empenhou.
A comprovar que a tara do adesismo não conhecia limites partidários, o governo Lula, não obstante o escândalo do mensalão, levou o adesismo ao paroxismo, chegando à quase unanimidade decorrente da corrupção, como ficou visível e conhecido por meio da Operação Lava Jato.
O adesismo do governo Lula, bem lubrificado pela sua popularidade e pelo seu peculiar carisma, não se limitou à sua pessoa.
Passou para Dilma, a sucessora que elegera e que, embora destituída de todos os atributos de imagem que Lula possuía, não teve problemas em contar com ampla maioria no Legislativo.
Por fim, com o impeachment de Dilma, o adesismo, como uma “ameba gigante”, não teve maior dificuldade de se reagrupar, com inegável disposição no governo Temer.
Como se vê, o adesismo não é uma peculiaridade de um determinado grupo de partidos, pertencentes ao setor de centro-direita do espectro político; tampouco não dependia da prática democrática, já que soube se acomodar sem dificuldade na Arena do período autoritário; conseguiu também se alojar na nova República do governo Sarney; sobreviveu à ampla modificação do sistema político, com a Constituição de 1988; depois ajustou-se ao Plano Real, à rigorosa Lei de Responsabilidade Fiscal e ao governo FHC; chegando ao “paraíso” no governo Lula e Dilma, com o estímulo extra do pagamento mensal por serviços prestados e, para espanto do mundo, com o petrolão ainda em investigação, um escândalo numa escala de país altamente desenvolvido e multinacional.
O fato é que o adesismo não pertence ao mundo da conjuntura, já que foi capaz de saltar sobre todos os obstáculos e mudanças que se sucederam na política brasileira desde Getúlio, passando pelo regime de 64, pela Nova República, pela Constituinte, pelo governo Itamar, pelo governo FHC, por Lula e Dilma, até chegar aos nossos dias com Temer.
Curiosamente, só o breve governo Collor não se beneficiou deste adesismo, até onde se sabe em grande medida por que não o quis, e, segundo muitos, foi essa recusa a razão principal para o impeachment.
Ao contrário dos países de cultura política de democracias estáveis, no Brasil, ser da oposição é ser amaldiçoado; o trágico é “perder a boquinha” no governo.
Nossa cultura política está muito mais para um processo tendente à unanimidade do que para o conflito.
Em consequência, não temos oposição como uma estrutura política independente, que se mantém como alternativa ao governo.
Somente um raciocínio político desligado da realidade, portanto, pode conceber como “solução” política para o País, por exemplo, o parlamentarismo, regime político que depende de modo absoluto da existência de uma oposição para sua dinâmica de funcionamento.
O eufemismo mais recente para revestir de dignidade o oportunismo adesista é o conceito de governabilidade: a pretensa necessidade de formar maioria parlamentar permanente para governar.
Depois que esta “justificativa nobre” foi encontrada, o processo atingiu as raias do indecoroso, atenuado por um conceito com pretensões acadêmicas – presidencialismo de coalizão – que logo passou a ser utilizado de forma deturpada pela linguagem política como uma justificativa elegante para o adesismo.
O adesismo é, pois, um traço estrutural do sistema político.
Diante de sua força, chega a ser irônica a tentativa de modernizar nosso sistema político por mais uma soi disant reforma da legislação política.
Tais reformas não passam de aperitivo para a fome incontrolável da tara adesista, a mesma que não hesitou em engolir todos os artigos, parágrafos e incisos da nova Constituição.
Como traço estrutural, o adesismo ainda vai viver conosco por um bom tempo, corroendo e corrompendo nossas práticas políticas, no estado de instabilidade política crônica em que vivemos e que ainda vamos ter de viver por muito tempo, como detalhadamente analisei no meu livro Brasil: a cultura política de uma democracia mal resolvida.
Esta “tara adesista” de boa parte da classe política e empresarial, tão característica de nossa cultura e prática política, compromete – e pelo visto continuará comprometendo – severamente a independência dos poderes, a eficiência do governo e, em consequência, a qualidade de nossa democracia.
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*Professor de ciência política, ex-reitor da UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton, é criador e diretor de Política para Políticos (www. politicaparapoliticos.com.br)