Do pegadio ao compadrio 25/12/2016
- CARLOS AYRES BRITTO*
Sobe-me à reflexão, hoje, o tema do ser humano adulto, vacinado e brasileiro. O ser humano “cotidiano e tributável” de que falava Fernando Pessoa.
Ser humano igual a todos nós que moramos “do lado de baixo do Equador”, como na canção de Chico Buarque.
Isso para eu mesmo poder ajuizar que temos sido educados, mentalizados, catequizados numa dominante direção: a que nos prende mais às pessoas do que à Vida em si.
PUBLICIDADE
Todos nós como que a ignorar o fato de que nenhuma outra pessoa física se põe tão próxima da gente quanto a Vida (Vida assim, com a inicial maiúscula) que nos é externa.
Ainda que se trate de alguém da nossa família, um religioso, um professor, um amigo de fé.
Ninguém!
Ninguém se liga o tempo todo em nós quanto a Vida o faz.
Vida que tanto cola, tanto gruda na gente que torna essa permanente contiguidade física um entrar por todos os nossos poros, veias, pulmões, narinas.
A sinalizar que entre ela e a pessoa de carne e osso não há tanta necessidade assim da mediação de outrem.
Essa é uma dicotomia que reclama estudo.
De uma banda, a Vida que nos é exterior; de outra, as pessoas físicas ou naturais.
A Vida como o reino da objetividade, as pessoas como o reino da subjetividade.
Com esta peculiaridade brasileira de que estou a falar: somos tão afeitos às relações pessoais que só vemos algum sentido em nossa própria vida quando em face de fulano, beltrano ou sicrano.
Feito corda de caranguejos.
Os outros a dar sentido à Vida em geral e à nossa em particular.
Não a gente a buscar o sentido das coisas e de nós mesmos na Vida que nos circunda e que tanto nos antecedeu temporalmente quanto vai ficar sozinha pra contar a história da nossa efêmera passagem por ela.
Daí o significado corrente da palavra “pegadio”: uma afeição desmedida, um xodó, um chiclete emocional em face de uma particularizada pessoa.
A gente a dançar conforme a música de um outro que veio do pó e para o pó retornará.
Não a seguir este definitivo conselho de Nietzsche:
“Quem quiser me seguir, não me siga”. “Torna-te quem és”, ele mesmo acrescentou, como que também a desgostar dessas relações de roda-de-saia.
Relações de copa-e-cozinha ou de compadrio, já numa linguagem político-sociológica.
Relações de caciquismo, no apropriado jargão político-partidário. Que são relações em torno de pessoas, e não de ideias.
Menos ainda de ideais. Por isso que impeditivas de uma linha direta de cada indivíduo com a Vida ou Existência pura e simples.
Existência que só manda um recado estalando de novo para a pessoa que mantém com ela uma linha direta.
Sem a menor intermediação subjetiva, porque esse tipo de meio-de-campo somente leva a um conhecimento de segunda mão.
Sendo certo -- permito-me ajuizar -- que todo conhecimento que não for de primeira mão é porque já é de quinta.
Pois bem, as dicotomias têm um sentido maior, que é a sua otimizada conciliação numa unidade.
O caminho do meio ou o medius in virtus da clássica filosofia grega.
Pelo que esse ponto ideal de conciliação tem sido protagonizado pelas instituições, também me animo a afirmar.
Instituições privadas, como as famílias, empresas, escolas, igrejas, associações sindicais, academias de letras e científicas, notadamente.
Instituições públicas, de que servem de exemplo as constitutivas dos Três Poderes do Estado, mais o Ministério Público e os Tribunais de Contas.
Todas a se pôr como estruturas sociais e ao mesmo tempo um aparato jurídico do mais constante diálogo entre o subjetivo bloco dos seus membros humanos e a pura objetividade de um ideal comum a alcançar.
Uma congregação de pessoas (agentes públicos, no caso do Estado) para uma objetiva agregação de valores à atuação de todas e de cada uma delas.
Algo de subjetivo que perdura e algo de objetivo que se introduz por meio de um estatuto.
Estatuto ou corpo de regras para a desejada conciliação dos polos contrapostos.
É neste ponto de visualização do tema que salto para uma nova comparação: a que decorre da constatação de que as instituições privadas funcionam melhor que as de índole estatal-governativa.
Elas, instituições organizadas e operadas pelos particulares, são mais aproximativamente fiéis aos seus objetivos.
Fogem menos da raia ou se desviam menos das respectivas finalidades.
Salvo quando acumpliciadas com as próprias instituições públicas para um desvio de rota que sempre deita raízes em atentado a deveres morais.
No pressuposto jurídico, óbvio, de que todo desperdício, toda malversação, toda corporativista renúncia, toda criminosa apropriação de bens, valores e dinheiros públicos vai corresponder a este aritmético e espúrio balanço: o que sai indevidamente do Estado é o que vai faltar para ele corresponder às razões do seu existir.
Para ele dizer à sociedade civil para o que veio.
Para se dar ao respeito, portanto.
Ora, dizer que as instituições propriamente governativas são as que pior funcionam no Brasil é concluir que o estatuto delas é o mais desrespeitado.
Estatuto que, no plano do Estado como pessoa jurídico-política, é a própria Constituição federal.
Donde o acabrunhante paradoxo de que a Lei das Leis do Estado brasileiro é a menos efetiva das leis.
Justo ela, que presta o maior dos cultos à moralidade administrativa, como se lê a partir do § 9.º do seu artigo 14 e, principalmente, na cabeça e no § 4.º do seu artigo 37.
Logo ela, que pelo seu artigo 170 faz da ordem econômica nacional uma civilizada economia social de mercado.
Um capitalismo social, no rigor dos termos, e não um capitalismo selvagem.
Dispositivos que, só por eles e desde que devidamente respeitados, transportariam o povo brasileiro para o melhor dos mundos.
Sem mensalões, sem a necessidade de operações Lava Jato e sem esta cruel estatística de 12 milhões de desempregados.
Uma dor que trinca até o osso da alma.
Um dar as costas à eterna advertência de que “sem o mínimo de bem-estar material não se pode sequer servir a Deus”, feita por Santo Agostinho (354/430 d.C).
Um gigantesco sino de Natal a bater na consciência dos que estão a decidir sobre os direitos sociais dos dias presentes?