Turbilhão de paixões 30/12/2016
- NELSON MOTTA - O GLOBO
"Muito mais tarde, quando envelhecia, compreendi que o amor exige uma espécie de cegueira. Amamos não quem os nossos olhos enxergam, mas quem nosso coração demanda. O ser amado é, quase sempre, uma invenção indulgente de quem ama."
Concordo com o personagem de José Eduardo Agualusa, é um tema atual e oportuno para uma crônica.
Se o amor, com sua nobreza, é assim tão cego, imaginem as paixões, aquelas avassaladoras que obliteram a razão e confundem os sentimentos, como uma droga pesada que vicia e cria dependência, e cobra um alto preço na saída.
PUBLICIDADE
A invenção não é só uma rima pobre da paixão, mas a sua parceira perfeita. A pessoa já está em um “estado de paixão”, só falta o objeto. Como um manequim em que se vai colocando roupas, adereços e atributos que estão nos olhos de quem vê: beleza, inteligência, generosidade, tolerância, honestidade, sex appeal, humildade, altivez, qualquer qualidade só precisa de um pouco de imaginação do apaixonado para caber no objeto de seus sentimentos e desejos.
O apaixonado vê o que quer ver, vê até o que não existe e ele mesmo inventou. O problema é quando a magia acaba, quando termina a “suspensão voluntária da descrença” que permite crer na ficção, e também na paixão, e o outro vai se revelando como é, como sempre foi, muito diferente do idealizado. O que era adoravelmente tímido e discreto vira uma besta que não tinha nada a dizer.
Enquanto a paixão se limita a duas pessoas, são só elas as responsáveis por suas dores e delícias, mas quando sua natureza é ideológica e se personifica em líderes políticos, os danos são para todos. As legiões de apaixonados são capazes de tudo, são incontroláveis, veem o que querem ver, lembram o que querem lembrar, esquecem o que querem esquecer, aceitam a invenção como verdade em nome de uma verdade maior: o líder.
É uma paixão que não só cega e ensurdece, mas emburrece, tira a capacidade de análise, crítica e opinião. E, ao contrário de paixões carnais que eventualmente se transformam em amor, as ideológicas só criam intolerância e ódio, que muitas vezes se voltam contra os líderes que os inspiraram.