Ano novo, velhos fantasmas 31/12/2016
- ADRIANA CARRANCA
Aos que torcem para que logo venha meia-noite, como eu, espero de coração que a virada traga novas alegrias. Mas é preciso lembrar que teremos de lidar em 2017 com as consequências deste ano — um ano em que nossa humanidade (compaixão, princípios e valores) foi testada à exaustão, e os limites da barbárie e da falta de ética, alargados talvez de forma irreversível. É um ano que nasce velho.
O magnata Donald Trump assumirá a Casa Branca e o posto de comandante em chefe da maior potência militar do mundo, com acesso ao arsenal nuclear e aos protocolos e códigos que permitem acionar um ataque de onde estiver.
Trump é uma incógnita. Se cumprir com as palavras em campanha, poderá reduzir o papel dos EUA na Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar estabelecida em 1949 entre Washington, Canadá e dez países da Europa ocidental, e hoje com 28 integrantes, contra a União Soviética, e na ONU, que surgiu no rastro da Segunda Guerra para garantir que tragédias como tal não mais acontecessem (os EUA respondem por algo como 22% do orçamento das duas instituições).
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Também poderá aumentar o protecionismo e retirar o país de tratados de livre comércio, bandeira com que as democracias liberais do Ocidente expandiram sua influência no último século.
Ao mesmo tempo, o Reino Unido começará a preparar sua retirada da União Europeia.
Os governos de Trump e da primeira-ministra britânica, Theresa May, defensora do Brexit, devem servir de combustível para a ascensão de outros líderes e movimentos nacionalistas em França, Alemanha e Holanda, onde haverá eleições em 2017.
O descontentamento que levou aos resultados deste ano se deve em grande parte a uma economia global que continua a beneficiar de forma desigual os ricos, e essa desigualdade continua a ser o motor da instabilidade.
“A concentração econômica está permitindo a empresas extrair lucros recordes”, escreveu esta semana Adrian Wooldridge, da “Economist”. “Gigantes como Google e Amazon desfrutam de fatias de mercado não vistas desde o final do século XIX, a era dos barões ladrões” (capitalistas milionários que adquiriam fortunas nos EUA com métodos pouco escrupulosos).
O protecionismo proposto pelos populistas para recobrar os empregos não só deixará de cumprir a promessa e atender as demandas dos eleitores como pode resultar na desaceleração ainda maior da economia, como nos EUA dos anos 1930, quando o protecionismo levou ao desastre econômico.
Os novos tempos anunciam velhos fantasmas.
A política externa será dirigida por interesses nacionais e não por valores ou pelo conceito da comunidade internacional, acredita Simon Fraser, chefe da diplomacia britânica até o ano passado, que prevê um novo período de enfrentamento nos moldes da Guerra Fria.
À BBC, ele disse: “A era pós-Guerra Fria de globalização liderada pelo Ocidente, predominância dos EUA e confortável ascendência dos valores liberais internacionais acabou.”
Em seu livro “A quarta revolução: a corrida global para reinventar o Estado” (Companhia das Letras), John Micklethwait e Wooldridge mostram como a desilusão com os governos ocidentais se tornou endêmica e põe em risco o modelo de Estado como conhecemos, com o centro da gravidade — e de poder — mudando rapidamente.
As fissuras no Ocidente e o enfraquecimento do sistema internacional servem principalmente aos autocratas anti-Ocidente como o Partido Comunista da China e o ex-agente da KGB Vladimir Putin, da Rússia, integrantes do Conselho de Segurança da ONU que usaram o poder de veto para barrar ações contra Bashar al-Assad na Síria e ignoram deliberadamente determinações da organização (como nos casos da anexação da Crimeia e da recente disputa territorial de Pequim com Filipinas).
Wooldridge vê similaridades entre o cenário que levou ao colapso da ordem liberal em 1917 e hoje.
Nada mal para as celebrações dos cem anos da Revolução Russa e da chegada de Lênin ao poder, em 2017.
Ele aponta, no entanto, para uma diferença hoje: “Desta vez os primeiros tiros estão sendo disparados pela direita e não pela esquerda, pelos Brexiteers no Reino Unido e Donald Trump nos EUA.”