IDH, cascata e pororoca 10/11/2006
- Blog de Reinaldo Azevedo - Veja Online
¨Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar, ela é móvel para todos os lados e pode vestir todos os trajes da verdade. A verdade, porém, tem apenas um vestido de cada vez e só um caminho, e está sempre em desvantagem¨ -- Robert Musil em ¨O Homem sem Qualidades¨
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Minha paciência para Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) é zero. Os jornais dedicam páginas ao assunto hoje. Falo a respeito porque alguns leitores cobraram. Evitei ao longo do dia. É um porre. Eu diria que ele consagra o modelo do Apedeuta. O país melhorou se comparado consigo mesmo: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) passou de 0,788 para 0,792 (nesse caso, quanto mais perto de 1, melhor), mas perdeu uma posição no ranking. Na lista 177 países, caiu da 68ª para a 69ª. Foi superado pela Bielorrússia, que era comunista até outro dia... O IDH leva em conta índice de alfabetização, percentual da população que estuda, expectativa de vida e PIB per capita.
A melhora se deveu sobretudo ao PIB per capita: levou-se em consideração o crescimento de 2004, o melhor do governo Lula: 4,9%. Em 2003, houvera sido de 0,5%; em 2005, foi de apenas 2,3%. E se estima que fique em no máximo 3% neste ano (a aposta mais freqüente é 2,9%). A educação, por exemplo, que havia sido um fator importante em levantamentos anteriores, ficou estagnada.
O Pnud também aponta redução da desigualdade. O país estava em penúltimo lugar entre os piores e agora está em 10º. A ONU canta as glórias do Bolsa Família... Cuba sempre aparece à frente do Brasil. “Mamãe eu NÃO quero ir a Cuba/ NÃO quero ver a vida lá...”
Com o devido respeito, não dou um tostão furado para esses relatórios. Imagino como são feitas as pesquisas nas ditaduras, o seu grau de confiabilidade. O relatório diz, por exemplo, que o Brasil conciliou sólido crescimento econômico com distribuição de renda... Como assim? Em quatro anos, o país deve crescer, na média, 2,65%... O fator que fez reduzir a desigualdade, elogia a ONU, foi o Bolsa Família, mas não se notou, desta feita, avanço na educação. Mesmo assim, elogios. Isso quer dizer que o esmolário faz diminuir a “desigualdade” da hora no país. Já a educação, um valor que fica, estagnou. E se produz desigualdade futura.
O IDH, vá lá, é mais ou menos objetivo. Mas a tal “desigualdade”, que trata da concentração de renda, se presta a todas as demagogias. A ONU chegou à conclusão de que a Guatemala, que só era pior do que o Brasil em distribuição de renda, agora é menos desigual do que o Chile. Mas, não sei por quê, intuo que a maioria dos guatemaltecos trocaria de vida com os chilenos, mas não o contrário...No quesito “concentração de renda”, por exemplo, Cuba é uma beleza... E acredito que boa parte dos cubanos trocaria de vida com os guatemaltecos. Em suma: a renda pode estar perfeitamente desconcentrada quando todo mundo é miserável.
Mas Lula ganhou o elogio ao Bolsa Família. Já está de bom tamanho. E chega dessa conversa chata. Até porque, o papo agora é discutir Índice de Felicidade. Os 295 mil nativos do Arquipélago de Vanuatu, no Pacífico, estão com tudo. É o povo mais feliz do planeta, segundo a New Economics Foundation e a ONG Friends of Earth. Nesse caso, mede-se esperança de vida ao nascer, bem-estar (?) e danos ambientais. Também nesse caso, o Brasil se ferrou: ficou em 65º lugar, atrás até do Paraguai. É preciso criar um índice pra saber quem tem a maior pororoca do planeta. Que eu saiba, é a nossa. Ou nem isso?
O PIB melhor de 2004 — ou seja, crescimento econômico — garantiu que o Brasil não passasse um vexame no IDH, apesar da tal redução da pobreza apontada pelo Pnud. E esta se deveu, basicamente, ao Bolsa Família, aponta a ONU para provável orgulho de Lula. Mas, ao mesmo tempo, saúde e educação nos empurraram para baixo. E isso tem um significado. As tais políticas focadas de atendimento à pobreza — em contraste com a chamada universalização — demonstram o seu fôlego curto. A confusão também é de nomenclatura.
Países que passaram, na década de 80, por fortes ajustes na economia, de caráter liberalizante, criaram programas específicos para atender populações ou grupos sociais diretamente atingidos pelas mudanças. Chamava-se a isso “política compensatória”. E o nome queria dizer exatamente o que expressa: vinha para compensar as mudanças.
No país da jabuticaba e da pororoca, desenvolveu-se uma certa “economia da pobreza” — que estimulou Lula a fundar o “pobrismo”, uma nova corrente econômica — que corta verba das políticas universalizantres para transferi-las para as tais políticas focadas: adaptação verde-amarela da política compensatória. R$ 1,5 bilhão da Saúde, por exemplo, foi parar no Bolsa Família.
Crescimento da economia, com efeito, não significa distribuição de renda. Mas pouco se distribui, a não ser miséria, quando a economia, como a nossa, cresce tão pouco: 2,65% deve ser a média dos quatro primeiros anos do governo Lula. Com a Educação e a Saúde estagnadas, ou regredindo, num ambiente de baixo crescimento, está-se contratando miséria a longo prazo: os futuros assistidos por algum programa de bolsa — que, por enquanto, serve para provar ao mundo que o Brasil reduziu a desigualdade.