Prudência na demarcação 23/01/2017
- O ESTADO DE S.PAULO
Atualmente estão em andamento ao menos 280 processos de demarcação de terras indígenas, como mostrou reportagem do Estado.
Trata-se de um tema complexo, com várias exigências constitucionais e diversas implicações sociais, políticas e econômicas.
No modelo vigente, cabe à União decidir sobre a demarcação.
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Infelizmente, o assunto foi tratado, após a Constituição de 1988, sem o devido cuidado, com decisões muitas vezes demagógicas, que geraram não pequenos problemas sociais.
Recentemente, o Ministério da Justiça autorizou a criação de um Grupo Técnico Especializado (GTE), com o objetivo de assessorá-lo sobre a demarcação de terras indígenas.
Apesar da polêmica surgida em torno do caso – que fez com que o Ministério editasse nova portaria, mais sucinta –, trata-se a princípio de uma boa medida, já que possibilitará uma decisão mais técnica em área tão afeita a pressões políticas.
No estudo das propostas de demarcação feitas pela Funai, é dever do Ministério da Justiça avaliar o cumprimento das condições estabelecidas pela Constituição para a criação das reservas indígenas.
Como se sabe, o constituinte definiu com precisão o que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios:
“As por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Infelizmente, o texto constitucional foi utilizado para criar reservas indígenas sem a devida ponderação.
Por exemplo, metade da área do Estado de Roraima está hoje destinada a reservas, com graves consequências econômicas e sociais.
Depois de um longo processo judicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou em 2009 que a reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, deveria ser contínua, obrigando a saída de todos os agricultores não indígenas.
A sua expulsão da reserva – uma área de 1,7 milhão de hectares – é uma das causas apontadas para a redução da produção agrícola do Estado, que em 2006 totalizava US$ 16,4 milhões e em 2013 não chegou a US$ 8 milhões.
Com o enfraquecimento econômico, Roraima é hoje mais dependente dos recursos federais, em situação inversa do que era de esperar.
É preciso rever a interpretação dada à Constituição, como se ela representasse um estímulo contínuo à criação de novas reservas.
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu art. 67, indica justamente o oposto:
“A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
A Assembleia Constituinte não tinha qualquer interesse em transformar a demarcação de terras indígenas numa questão eternamente em aberto, como parece ocorrer agora, tendo em vista o número de processos em andamento depois de quase trinta anos.
Como reação aos abusos cometidos, foi apresentada em 2000 uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215/2000) conferindo ao Congresso Nacional competência exclusiva para a aprovação da demarcação das terras indígenas e a ratificação daquelas já homologadas.
Aprovada em outubro de 2015 por comissão especial formada para analisar o tema, a PEC 215/2000 ainda depende da aprovação em dois turnos pelos plenários das duas Casas Legislativas.
Faz sentido a transferência dessa competência ao Poder Legislativo, tendo em vista que a própria Constituição, entre as garantias estabelecidas às terras indígenas, proíbe a remoção dos grupos indígenas de suas terras, “salvo ‘ad referendum’ do Congresso Nacional em caso de catástrofe ou epidemia (...) ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional”.
Se só o Parlamento pode autorizar tal remoção, deve caber a ele decidir quais reservas criar.
É no mínimo estranho que uma medida de tamanho impacto social, político e econômico fique a cargo de um simples ato do Poder Executivo federal.