O Brasil está sendo passado a limpo. O grau de corrupção ganhou proporções inauditas, permeando as instituições. Os exemplos mais variados mostram o quanto ela adentrou o Executivo, o Legislativo e, mesmo, o Judiciário, embora deste último tenham nascido as medidas moralizadoras e punitivas. O sistema partidário foi, certamente, o mais atingido, perdendo, inclusive, as suas condições de representatividade.
O combate à corrupção foi — e está sendo — capitaneado por um grupo de juízes, desembargadores, promotores e procuradores, contando com o apoio decisivo da sociedade e da imprensa e dos meios de comunicação em geral. Poderosos estão sendo julgados e condenados, alguns estando já presos.
Do ponto de vista social, a transformação é imensa, pois não são ladrões de galinha que estão pagando por pequenos delitos, mas os próprios corruptores das instituições nacionais.
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Acontece, contudo, que um processo de tal tipo não se faz sem atropelos e efeitos colaterais importantes. Prisões preventivas são utilizadas abusivamente ao arrepio de suas condições, indivíduos são encarcerados por longo tempo antes de serem efetivamente condenados, e punições, sob a forma de condenações públicas, tornam-se a regra.
Com razão, muitos se insurgem contra atos que não asseguram devidamente a defesa dos acusados e violam garantias individuais, constitucionalmente asseguradas. Não são pessoas que possam ser vistas de uma forma maniqueísta como defensores da impunidade.
A questão, porém, deve ser vista de uma outra maneira. Teria sido possível que a Lava-Jato prosperasse sem que certos atropelos à lei tivessem ocorrido? É plausível que, numa guerra, as regras de civilidade e convenções internacionais sejam estritamente seguidas?
Se o contexto é de limpeza da cena pública, a varredura deverá ser necessariamente rigorosa, obedecendo à sua própria lógica e condições. Se a cidadela da impunidade deve ser conquistada, os meios utilizados deverão levar em consideração adversários encastelados em suas posições de poder.
O atual sistema legal, até agora, vinha apenas assegurando a impunidade dos corruptos. Esta era a regra com todas as suas justificativas jurídicas correspondentes.
Tomemos o caso do foro privilegiado. Trata-se de instituto vigente que tinha um fim nobre, a saber, assegurar o exercício das atividades parlamentar e ministerial contra qualquer tipo de intervenção política arbitrária. Ocorre que ele terminou sendo desviado de sua função, tornando-se um abrigo dos que querem fugir da Justiça.
Observe-se que muitos políticos nem entram no mérito das acusações que contra eles são lançadas, como se isso não tivesse a menor importância. Atêm-se, somente, a pequenas considerações legais, respaldadas no foro privilegiado e ressaltando que não foram julgados.
Ocorre que não foram julgados e eventualmente condenados por usufruírem precisamente do foro privilegiado, que funciona como um escudo da impunidade. Note-se que as condenações em primeira instância da Lava-Jato, em Curitiba, e referendadas pela Segunda Instância do TRF-4, em Porto Alegre, já ultrapassaram a centena. A Justiça, nesta esfera, está sendo, portanto, feita.
No Supremo Tribunal Federal, contudo, não há nenhuma condenação dos que gozam de foro privilegiado. A sua morosidade termina por consagrar a impunidade. A justificativa de que a Procuradoria-Geral da República não está fazendo o seu trabalho a contento somente agrava a situação, pois também ela estaria consagrando a impunidade. Artifícios legais e tergiversações não devem ser instrumentos da injustiça.
Tomemos o caso dos vazamentos. Evidentemente, não são eles inocentes, mas perseguem certos objetivos. São seletivos, escolhendo determinados alvos e, neste sentido, são arbitrários. Qualquer um pode ser atingido a qualquer momento. Inocentes podem ser atingidos e sua honra, destruída, sem que tenham sido julgados.
Exemplos disto são certas delações, como a de Cláudio Melo Filho. Algumas das acusações — outras são precisas — estão baseadas em meras impressões, sem embasamento fidedigno. Provas materiais deverão ser apresentadas, pois, sem elas, alegações serão meramente alegações.
Ocorre que elas terminam se tornando a base de matérias jornalísticas, superficialmente feitas. Assim, procede-se à contagem de quantas menções foram feitas a certos políticos. Algumas alcançam dezenas.
Entretanto, uma leitura acurada do documento mostra que o seu fundamento consiste em referências do seguinte tipo. Fulano foi recebido por sicrano (uma menção), este o convidou para sentar (segunda), ofereceu-lhe um cafezinho (terceira) e assim indefinidamente até o aperto de mãos na despedida, perfazendo dezenas de menções.
A questão, porém, deve ser também abordada em outra perspectiva. Considerando que as instituições vigentes têm consagrado a impunidade, teria sido a Operação Lava-Jato efetiva sem os vazamentos? Não cumprem eles uma função saneadora da vida pública? Se o segredo da instrução fosse efetivamente assegurado, estariam os poderosos sendo investigados e condenados?
Os vazamentos são um efeito colateral de instituições que não vêm cumprindo com suas finalidades. Se o sistema jurídico estivesse voltado realmente para a condenação dos políticos que usufruem do foro privilegiado, a disfuncionalidade dos vazamentos não existiria, pela simples razão de que seriam desnecessários.
Os vazamentos e sua repercussão jornalística cumprem com um papel essencial, o de esclarecerem a sociedade sobre os seus representantes. Sem eles, não teriam acesso à informação, nem consciência de quem os dirige. A consciência social e nacional seria capenga.
Basta que as condições que tornam necessários os vazamentos sejam suprimidas para que estes desapareçam ou se tornem irrelevantes. Dentre elas, o fim do foro privilegiado como hoje existe, a morosidade dos julgamentos e a eliminação do segredo de processos de agentes públicos que devem prestar contas a toda a nação.
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*Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul