Daniel Ortega, de comandante marxista a caudilho 14/11/2006
- Stephen Kinzer - O Estado de S.Paulo
Ex-revolucionário sandinista é hoje um cruzado da boa governança aliado ao que de mais corrupto há no país
Depois de tomar o poder na Nicarágua, em 1979, os revolucionários sandinistas serviram-se das riquezas que os inimigos derrotados deixaram para trás.
Um ¨comandante¨, Daniel Ortega, gostou de uma mansão cercada de muros no centro de Manágua, abandonada por um banqueiro que fugiu para o México. Ele nem sequer fingiu um procedimento legal: confiscou a casa e se mudou. O proprietário, Jaime Morales, uniu-se aos contra-revolucionários - os ¨contras¨ - e prometeu destruir o novo regime por meio da força armada.
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Apesar das centenas de milhões de dólares em ajuda dos EUA, a guerra dos ¨contras¨ fracassou. Mas os sandinistas, no fim, também caíram. Em 1990, os eleitores nicaragüenses rejeitaram Ortega. Depois de um período de reclusão, ele ressurgiu com uma nova identidade - o velho caudilho que usa a ideologia quando lhe convém, mas dedica-se principalmente à busca do poder.
Na semana passada, a transformação de Ortega foi coroada com triunfo quando, em sua terceira tentativa, ele conquistou a presidência da Nicarágua numa eleição livre.
Seu vice-presidente é ninguém menos que Morales, que voltou à Nicarágua depois da guerra civil, selou um ¨acordo privado¨ com o velho inimigo (supostamente envolvendo permuta de terras) e deixou de reivindicar sua antiga casa.
Nos anos 80, Ortega denunciou os contras como ¨bestas¨ e prometeu combatê-los até a morte. Ninguém na Nicarágua, contudo, ficou surpreso quando ele escolheu um ex-contra como companheiro de chapa.
Ortega é, afinal, um cruzado da boa governança que se aliou aos personagens mais corruptos do país; um defensor dos pobres que ficou muito rico graças a uma série de transações misteriosas; e um ideólogo de esquerda que se mostrou pronto a adotar qualquer causa - mais recentemente, a proibição total do aborto - que resulte em vantagem política.
A Nicarágua é um pequeno país de 5,6 milhões de habitantes. Cada membro da classe política conhece todos os outros e, em muitos casos, eles têm complexos laços pessoais e familiares. Para os forasteiros, o país parece agudamente dividido pela política.
As disputas políticas, no entanto, muitas vezes mascaram rixas internas em famílias e clãs. Para os forasteiros, o fato de Ortega ter abandonado quase tudo em que supostamente acreditava pode parecer um ato de cinismo espetacular. Para os nicaragüenses, é apenas o último exemplo de como os líderes de sua nação irascível são, no fim das contas, propensos a perdoar uns aos outros e encontrar novas maneiras de dividir o espólio.
Este não é o único aspecto da vida política nicaragüense que permaneceu constante, apesar das grandes mudanças que reformularam o país nos últimos 25 anos. Os nicaragüenses, como os habitantes de outros países latino-americanos, ainda estão prontos para apoiar líderes populistas que governam pela força da personalidade, e não pelas instituições. Eles continuam desconfiando dos Estados Unidos, que intervieram repetidamente na Nicarágua no último século. E são fascinados, como sempre, pelos melodramas familiares encenados no palco nacional.
Ao longo de grande parte da história nicaragüense, o mais picante desses dramas envolveu os clãs Chamorro e Somoza. Agora os Ortegas entraram no espetáculo. O irmão do presidente eleito, Humberto, que foi ministro da Defesa sandinista nos anos 80 e depois fez fortuna como empresário, recusou-se a endossar sua candidatura. A enteada de Ortega disse ter sido vítima de abuso sexual do padrasto a partir dos 11 anos, quando ele estava com 34. Sua mulher, Rosario Murillo, continua firmemente leal. Ela dirigiu a campanha eleitoral deste ano - na qual o marido não deu entrevistas nem participou de debates - e deverá ter papel importante em seu governo. Alguns já comparam Rosario a Dinorah Sampson, que, nos anos 70, foi amante do presidente Anastasio Somoza Debayle e uma influência sinistra por trás do trono.
¨Nos anos 80, Ortega governou como parte de uma liderança sandinista coletiva¨, disse Carlos Fernando Chamorro, que na época era editor do jornal oficial sandinista, enquanto sua mãe, seu irmão e sua irmã dirigiam o sitiado jornal da oposição. ¨Agora, isso tem muito mais a ver com poder pessoal e familiar. É novo para Ortega, mas para a Nicarágua é um velho padrão.¨
Alguns funcionários do governo americano parecem prontos para enfrentar Ortega de novo. Advertem que ele está prestes a se tornar o representante centro-americano do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, o nome mais recente na lista de inimigos dos EUA. Mas muitos nicaragüenses, incluindo alguns ex-contras, querem que os americanos dêem uma segunda chance a Ortega.
¨Quando os sandinistas chegaram ao poder, usavam fardas sujas, não tinham nenhuma experiência além de dar ordens¨, disse Adolfo Calero, que nos anos 80 liderou a maior facção dos contras.
¨Eram bárbaros no banquete. Agora, estão mais velhos e têm famílias. Alguns têm interesses econômicos muito fortes. Espero uma atitude totalmente diferente. Minha esperança é que o poder não os seduza, como fez da última vez, mas os torne mais responsáveis¨, afirmou Calero.
Nos anos fora do poder, Ortega virou um mestre dos acordos de bastidores. Assim que começou a última campanha, ele assinou uma declaração prometendo apoiar a iniciativa privada e o Acordo de Livre Comércio Centro-Americano. Nas próximas semanas, espera-se que peça a líderes empresariais que indiquem candidatos a cargos importantes.
Ortega derrotou os velhos inimigos. Mas muitos aliados antigos, incluindo a maioria dos ¨comandantes¨ que o acompanharam no governo nos anos 80, romperam com ele por não tolerar seu estilo egocêntrico e sua indisfarçável ânsia de poder.
¨No longo prazo, ele desejará consolidar o poder de maneiras que irão além de um mandato presidencial¨, previu um desses desertores, Sergio Ramírez, romancista que foi vice de Ortega nos anos 80. ¨Seu impulso básico é autoritário, e sua amizade com Chávez e Fidel Castro reforça isso.¨