Com a palavra, o boi 26/03/2017
- ARNALDO BLOCH - O GLOBO
Digamos que um boi desgarrado dum rebanho, ou fugido de um matadouro, se encontrasse num terreno baldio, ou num campinho de vargem abandonado, pastando sobre uns restos de graminha e, inadvertidamente, cruzasse caminho com um repórter especial com poderes especiais, capaz de extrair, de seus mugidos, a opinião do animal não apenas sobre a crise da carne, mas sobre a situação toda do país.
Por mais opinoso que fosse esse boi rebelde, anônimo, clandestino, a carne, do ponto de vista do consumo, não estaria entre suas prioridades: boi não come boi, o que faz dele, por sinal, um ser em sintonia com a política vegana, tão em voga, mas não por ideologia, e sim por sua involuntária natureza.
Fosse ele de fato fugitivo de um matadouro, aí sim, talvez, tivesse algo a dizer sobre como se tratam os seus irmãos e suas irmãs (vacas são abatidas em menor número, mas também levam a lâmina, o choque no ânus, o tiro na cabeça ou o que lá seja, dependendo da tecnologia empregada).
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O mesmo sobre os filhos, novilhos, vitelas: não há trégua nem para os bebês, mais tenros ao palato do comensal, escolhidos a dedo nas fazendas.
Falaria, ou mugiria, em nome também dos cabritos, das ovelhas, dos bodes vertidos em buchadas, preferidas até por presidentes, e dos frangos confinados dia e noite na luz.
Fosse nosso boi vadio um boi versado, talvez tecesse considerações sobre o aspecto econômico dentro da dinâmica da cadeia alimentar humana, levantando fatores socioeconômicos, culturais e evolutivos.
Diria o boi que se, talvez, no futuro, a hoje chamada escravidão animal venha a ser abolida, isso não se fará de uma hora para outra, ou a toque de caixa, como, por exemplo, se tenta fazer agora com assuntos tão importantes quanto a lista fechada ou a terceirização de atividades fins.
Será preciso uma transformação de mentalidades e um ambiente econômico em que um país não corra o risco ainda maior de quebrar se o consumo de suas entranhas, aqui e lá fora, for impactado.
Ainda que por uma inspeção da Polícia Federal que em alguns aspectos, se chamarmos de bovina como fazia Nelson Rodrigues, talvez seja ofensiva aos próprios bois, que não têm nada a ver com o modo com que se manipula seu corpo para a comercialização, ou com as vaidades do Poder Judiciário, antes ou após o abate.
Mas o leitor sabe, o cronista sabe (embora, por natureza, tome liberdades metafóricas e hiperbólicas como instaurar uma entrevista de um repórter com um boi), e talvez o próprio boi saiba que bois não falam e que não há um dicionário para mugidos que dê conta de muitas traduções além dos sons que expressam dor, contentamento, contrariedade ou afeto, no trato com os seus pastores ou seus matadores.
O que leva, enfim, o cronista a chegar ao ponto que almeja: se é difícil, na vida real como a conhecemos, perguntar ao gado sua opinião sobre o abate, é mandatório consultar o eleitor (para não dizer “povo” e soar casuístico) sobre temas que afetam sua vida, e o que pensa sobre a maneira como se trata o seu destino no âmbito público, seja para efeitos de arrecadação, seja no que toca às legislações que determinam seu futuro e, consequentemente, o futuro do país.
Que é, em última análise, constituído por todos os setores da boiada, dos mais magros aos mais gordos, dos desgraçados aos afortunados.
Nesse sentido, a pressa com que alguns magistrados e políticos querem aprovar a lista fechada sem qualquer tipo de consulta à sociedade (caso muito bem expresso no embate entre um altíssimo juiz e um colega envolvido na questão, que pede para os apressados baixarem a bola) é exemplar: fica a forte impressão de que o interesse em tamanha celeridade tem muito menos a ver com a qualidade dos candidatos e o aperfeiçoamento do sistema e muito mais com a chance de livrar sua turma da fila do abate.
Ou, conforme se quiser chamar, a fila do jato d’água e seus consequentes encanamentos.
Nos outros grandes temas da nação parece que tudo caminha na mesma vertente.
A discordância entre Câmara e Senado no caso da terceirização de atividades-fim, e da reforma trabalhista como um todo (deixemos de lado a Previdência, cuja gestação é mais, digamos, pluralista e multissetorial) parece estar ora relacionada com os interesses das casas legislativas e do Executivo diante do eleitorado e das empresas (todos interesses legítimos).
Deixa, contudo, mais para a margem do campo social, o que diz quem mais será afetado, negativa ou positivamente: o trabalhador.
Este sabe falar e, apesar das metáforas já tão repisadas (muito antes da famosa cena na abertura de “Tempos modernos” já se comparava porta de fábrica com porteira de fazenda), não é boi, é gente.
Com todo respeito aos nossos irmãos no espectro multibiológico, ao qual São Francisco de Assis é tão sensível. Ficção?