“Por favor, não saque a arma no saloon. Eu sou apenas o cantor” - Belchior (1946-2017)
Não se trata de inventar palavras novas à toa. Acontece apenas que, de vez em quando, para compreender o incompreensível e dizer o indizível é preciso ver o invisível e, nesses casos (extremos), uma palavra é tudo o que nos resta.
Palavras, para quem ainda não percebeu, são máquinas de ver. Só vemos com nitidez aquilo que somos capazes de nomear.
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O sociólogo francês Pierre Bourdieu, no livro "Sobre a Televisão", já tinha avisado: “Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência”.
Um pouco antes dele, o jornalista americano Walter Lip-pmann, em "Opinião Pública", escreveu mais ou menos a mesma coisa:
“Na maior parte das vezes, não vemos primeiro para depois definir, mas primeiro definimos e depois vemos”.
Em tempos de muito falatório, é paradoxal: não precisamos de menos, e sim de mais palavras. Palavras que nos tirem da cegueira. Palavras que nomeiem o inominável.
Sendo assim, aqui vai uma contribuição imodesta. Seguem-se quatro vocábulos heterodoxos – uns inexistentes, ainda, outros bem pouco frequentes – não para produzir a luz (disso a fala não dá conta), mas bulir com a escuridão.
As quatro palavras que serão expostas agora talvez nos ajudem o pensamento a sobreviver num Brasil indecifrável. Ou não. Em todo caso, bom proveito.
Pop-lulismo – Substantivo masculino, até onde se sabe. Designa uma afecção do espírito das massas que se manifesta na compactação de opiniões sob a forma de certeza coletiva sólida, que repele frontalmente disposições, informações, fatos e evidências em contrário.
Do carisma do líder pop (aquele de quem Barack Obama disse “é o cara”) o pop-lulismo carrega a idolatria, ainda que seu objeto de culto se tenha esvaziado de charme.
Seria um fenômeno típico da indústria do entretenimento, mais ou menos como a seita “Elvis não morreu”, não tivesse migrado para o universo conturbado da demagogia sob as vestes de populismo rancoroso.
Perdeu sua sustentação no mundo dos fatos, mas o pop-lulismo não vê o óbvio ululante – nem o admite.
Novelho – Substantivo masculino e adjetivo idem. O termo resulta da fusão (de resto, evidente) de dois adjetivos antônimos: novo e velho.
Vem a propósito de recentes declarações de luminares da sociologia pós-moderna apontando no atual prefeito de São Paulo “o novo” na política brasileira. Interessante.
Novo? De personagens que xingavam grevistas de vagabundos a história política do Brasil está cheia. Nunca nos faltaram autoridades que afirmavam que protestos de rua eram caso de polícia.
De outsiders que estrearam na política vituperando contra a política e contra a alegada putrefação dos hábitos políticos abundam exemplos no mundo inteiro.
No Brasil, tivemos em 1964 aquela pregação um tanto histérica de que era preciso livrar a política dos políticos. A coisa desaguou no golpe militar e, em 1968, recrudesceu com o golpe dentro do golpe.
Fardas e patentes na administração pública fariam bem ao povo brasileiro.
Logo, vale a pergunta: o que há de novo num político que vive de dizer que não é político?
O prefeito de turno pode, sim, ser uma novidade, mas isso não faz dele “o novo”.
A partir do pouco que dá para vislumbrar das ideias que ele representa, já se tem a certeza de que ele é bem mais velho que, digamos, Fernando Henrique Cardoso, que não é tão novo assim.
Não custa lembrar que um antigo compositor, não baiano, nos dizia ter visto “um museu de grandes novidades”.
É um pouco assim que descamba o cenário nacional, salpicado de novelhos.
Antipolítica – Substantivo feminino. Como adjetivo, o vocábulo é mais usual. Aparece, com muita luz, no ensaio Verdade e Política, de Hannah Arendt. Empregado como substantivo é menos frequente.
Há anos este dedicado articulista vem alertando, neste espaço, para os riscos representados pela antipolítica (como substantivo). O uso vem se difundindo.
A antipolítica se define por ser uma atividade política articulada por um discurso que nega a política e desqualifica seus agentes. A antipolítica tende a desconstituir a política, mais ou menos como um cavalo de Troia.
A antipolítica é um vírus que invade o organismo e consegue disfarçar-se de célula de defesa. A antipolítica rechaça o diálogo e a negociação.
A antipolítica sugere que a força bruta é mais eficaz e mais rápida que as tentativas de entendimento.
Há traços rasgados de antipolítica em Donald Trump, em Vladimir Putin, em Recep Tayyp Erdogan e em Nicolás Maduro.
Há empuxos bem preocupantes de antipolítica no Brasil, à esquerda e à direita, como se pode deduzir dos dois verbetes anteriores, mas não vamos fulanizar ainda mais as moléstias do nosso quadro clínico.
Pós-imprensa – Substantivo feminino. Falou-se muito da “pós-verdade”, o vocábulo do ano do Dicionário Oxford em 2016. Outros preferem falar em “pós-fato”.
As duas palavras querem iluminar mais ou menos a mesma cena: na nossa era, a verdade factual deixa de ser o lastro em torno do qual se constroem os consensos para a gestão da coisa pública, para a administração do Estado, para a ação política dos grupos de interesse e dos partidos.
Em lugar da verdade factual, o que aflora são as convicções polarizadas, o fanatismo, o irracionalismo elevado à segunda potência.
Pois bem, se o fato perde valor na política, ele também perde valor na imprensa e se a imprensa não existe mais para checar os fatos, uma vez que ninguém mais liga para os fatos, essa mesma imprensa pode ser reduzida à triste condição de caixa de ressonância de preconceitos e mensagens de ódio (difusos ou concentrados).
Se o espírito original da imprensa morrer, o que lhe sucederá serão flechas envenenadas contra a democracia e, no fim, contra a civilização.
Ah, sim, os verbetes não foram arrolados em ordem alfabética. No meio da desordem conceitual, a ordem alfabética foi revogada.