O último ditador de uma espécie 07/01/2007
- Ian Buruna - O Estado de S.Paulo
Morte de Saddam elimina a era do tirano tradicional, agora substituído por executivos de corporações
Mesmo aqueles que deploraram a forma como foi morto, concordarão que Saddam Hussein foi um homem violento. Curiosamente, foi um bruto à moda antiga. Talvez não vejamos mais tiranos semelhantes a ele.
Naturalmente, a morte de Saddam não significou o fim da ditadura - mas talvez o fim de um certo tipo de ditadura, cujos símbolos e o aspecto exterior eram típicos do século 20 e hoje parecem tão antiquados como, por exemplo, os charutos e o chapéu melão de Winston Churchill, que já na época aparentavam ser do século 19.
Como todos os ditadores, Saddam tinha um pouco de gralha, em se tratando do aparato promocional, usando tudo o que viesse a calhar. Usava com freqüência o uniforme militar (embora, como muitos ditadores militares, nunca tenha enfrentado um combate verdadeiro), mas também gostava de se pavonear num terno listrado no estilo de um gângster, dando tiros para o ar. Em sua falsa aparência pan-árabe, se fazia representar como Saladino, o general muçulmano que libertou Jerusalém dos Cruzados, em 1187. Qualquer um que aspire a liderança de todos os árabes tem que reivindicar o manto de Saladino, embora Saladino, na verdade, fosse curdo. Convenientemente, ele nasceu em Tikrit, como o próprio Saddam.
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A imagem de Saladino servindo de apoio para as representações de Saddam, empinando seu cavalo branco, a cimitarra estendida, pode ser ridícula mas parece menos antiquada do que os uniformes militares e os espalhafatosos ternos no estilo Chicago. Nada parece mais antigo do que os modelos recentes. O tirano em uniforme cáqui é um produto do início do século 20, quando os antigos impérios entraram em colapso e o caos ameaçava. As formas tradicionais de governar e idolatrar foram varridas por sujeitos marciais que prometeram uma nova ordem, moderna, disciplinada e, muitas vezes, agressivamente secular. Embora distintos em muitos aspectos, os ditadores fascistas e comunistas tinham um senso comum de estilo. Saddam era fascinado por Stalin, mas a ditadura do seu partido Baath, nominalmente socialista, também tomou emprestado muita coisa do fascismo.
Os impérios desmoronados, especialmente em meados do século passado, eram geralmente impérios coloniais, e os tiranos em uniforme quase sempre emergiam das disputas anticoloniais, mesmo que, como Idi Amin ou o imperador Bokassa, tenham servido como soldados em exércitos coloniais. O tio e mentor de Saddam Hussein, Khairullah Tulfah, era um adversário fanático do colonialismo britânico. Foi ele quem encorajou Saddam a se tornar uma espécie de Saladino.
A aparência de gângster, hoje tão bizarra quanto o uniforme cáqui, lembra a imagem romântica do fora da lei combatendo os ricos e os poderosos em benefício dos pobres. O presidente Mao devorou livros sobre os Robin Hood chineses e Stalin foi também um desordeiro antes de entrar para a política. O déspota típico do século 20 era um populista que aparentava liderar as pessoas comuns contra os plutocratas, os aristocratas, os imperialistas e os empresários sugadores de sangue. Saddam Hussein não foi diferente.
Na nossa era de militância religiosa e capitalismo global, o revolucionário em uniforme do século 20 ficou anacrônico. Fidel Castro está morrendo. Seu maior admirador, Hugo Chávez, ainda cultiva essa retórica revolucionária antiquada, mas é uma pálida imitação. E mesmo um grande número de autocratas africanos hoje se assemelha mais a gordos banqueiros do que a guerrilheiros ou tiranos militares. Talvez aiatolás e sumo sacerdotes se tornem os ditadores do século 21. Mas o mais provável é que os magnatas famintos de poder sejam esses ditadores. O novo modelo de poder e eficiência não é mais o general ou o guerrilheiro, mas o CEO, o diretor executivo de uma corporação.
Como aconteceu na década de 30, estamos vendo o eclipse das elites tradicionais. Os burocratas europeus quase aristocráticos são universalmente temidos e antipatizados e os políticos estabelecidos nas nossas cansadas democracias parlamentares não inspiram mais confiança. Os racistas e extremistas estão conquistando votos na Polônia, França, Holanda, às expensas da média burguesia. Contudo, é improvável que muita gente queira seriamente ver tipos como Jean-Marie Le Pen assumindo o poder de fato. São grosseiros demais.
O empresário rico, o ¨CEO político¨, o super administrador, que promete fazer pelo país o que fez primeiro para ele próprio, é uma figura mais atrativa. Como Hitler entendeu tão bem, a comunicação de massa é a chave para o poder absoluto. Os autocratas modernos deverão ser os manda-chuvas da mídia que, como os nossos distribuidores de pão e circo contemporâneos, geralmente controlam um ou dois times de futebol. E como Hitler também compreendeu, a comunicação de massa se baseia no entretenimento, na sedução, e também na possibilidade de tranqüilizar ou dominar os dissidentes com ruído inebriante.
Podemos observar esboços das ditaduras futuras não nas regiões remotas da África ou da América Latina, mas dentro das nossas próprias democracias. Não quer dizer que essas democracias se tornarão tiranias, mas as técnicas usadas de ´venda´ dos nossos líderes logo serão adaptadas em sistemas que não mais permitirão a possibilidade de se destituir os tratantes por meio do voto. O sucesso de Silvio Berlusconi na Itália é o precursor do que é possível vender. Este ex-vocalista soube exatamente como seduzir seu público, combinando propaganda e entretenimento em todos os seus canais de televisão, sugerindo que ele poderia realizar coisas, como viril magnata, que os meros políticos não poderiam nem mesmo sonhar.
Enquanto que, para os tiranos do século 20, como Hitler, Stalin e Saddam, as tradicionais crenças religiosas eram obstáculos às suas fantasias modernistas, o político autocrata administrador poderá estar mais inclinado a utilizar a religião em benefício da sua causa. A aliança, nos Estados Unidos, entre a cristandade evangélica e o capitalismo corporativo já aponta nessa direção. Os tiranos do futuro, como sempre, usarão qualquer pretexto para terem êxito, mas independente de quem seja, o fato é que se assemelharão mais a Richard Branson (fundador daVirgin) ou Donald Trump do que a Saddam Hussein.