Morre Charlie Gard, o bebê britânico de 11 meses com doença terminal 28/07/2017
- BLOG DE REINALDO AZEVEDO
Há algo que ainda precisa ser explicado à luz da psicologia clínica, da psicologia social, da sociologia, da antropologia.
A que me refiro? Nenhuma militância é tão fanática como aquela favorável à morte. Não conheço militantes tão irascíveis como aqueles que pretendem legalizar o aborto e a eutanásia.
O que especulo? Sei lá! Talvez a eliminação do objeto que causa a dissensão provoque desses sectários alguma sensação próxima ao conforto.
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Morreu nesta sexta o bebê britânico Charlie Gard, de apenas 11 meses. Ele era portador de uma doença rara e incurável chamada “síndrome de miopatia mitocondrial”. Leva à perda da força muscular progressiva e a danos cerebrais irreparáveis. A criança estava internada no Hospital Great Ormond Street, em Londres, onde era mantida viva coma a ajuda de aparelhos.
Estamos diante de um caso bárbaro, absurdo, estupefaciente mesmo, de assoberbamento do Estado no confronto com os direitos individuais, com o pátrio poder e com o direito das famílias de fazer suas próprias escolhas.
Por que afirmo isso?
Os país de Charlie, Chris Gard e Connie Yates, haviam conseguido apoio internacional, com o suporte do Vaticano e do próprio governo americano, para transferi-lo para os EUA, onde seria submetido a um tratamento experimental. Mas a corte suprema do Reino Unido não permitiu. Atendeu, outrossim, à argumentação dos especialistas, que atestavam a irreversibilidade das condições de saúde de Charlie.
“E daí?”, pergunto eu. Sim, em certa medida, Charlie se tornou uma questão pública. Não é desarrozoado que o ente estatal se pergunte se é uma escolha certa investir recursos públicos na manutenção de uma vida considerada vegetativa. E olhem que mesmo essa indagação tem de ser encarada com o devido desconforto. É da vida humana que falamos.
Mas não era o caso. Os pais de Charlie haviam encontrado apoio para custear eles mesmos, por intermédio dessa rede de solidariedade, a tentativa de salvar o filho. Por mais que não se visse possibilidade de sucesso, o que posso dizer? O Estado não pode ter o direito, que entendo natural, dos pais de tentar salvar um filho. A ciência que se põe em defesa da morte é, por si mesma, um saber pervertido. O aparato científico que reivindica o direito de matar reivindica também o direito de decretar a morte de Deus, pondo-se ele próprio como o ente supremo.
Repete-se, de forma ainda mais degradante, o mesmo que se deu, nos EUA, em 2005, com Terri Schiavo, que passou 15 anos numa cama de hospital, mantida viva com o auxílio de aparelhos. O ex-marido, já com nova família constituída, recorreu à Justiça reivindicando o desligamento dos instrumentos artificiais que a mantinha viva. Os pais de Terri não queriam. Dispunham-se, às próprias expensas, a manter aquilo que se chamava vida vegetativa.
A Justiça americana deu ganho de causa ao marido. Para todos os efeitos, o casamento de ambos ainda estava em vigência, e era ele o primeiro responsável. Pareceu-me já uma decisão bárbara, mas, reconheça-se, havia ali ao menos uma questão que precedia a simples escolha entre a morte e, ao menos, o direito de tentar a vida.
Desta feita, não! Ninguém reivindicava poderes legais sobre Charlie além dos país. Ou melhor: reivindicava, sim! O Estado exigiu exercitar passo a chamar, então, de direito de matar. O Estado resolveu ser Deus.
À época, escrevi um texto que ganhou versão em várias línguas. Vocês sabem que não sou exatamente amado por todo mundo, o que me conforta bastante. É quase um dever do jornalista despertar alguns rancores. Nessa minha determinação de não ser um doce de coco, já apanhei muito por isso e aquilo. E costumo apanhar mais, por incrível que pareça, quando defendo a inviolabilidade da vida humana. DE QUALQUER VIDA E EM QUALQUER ESTADO. Relembro alguns trechos:
Vivemos os novos tempos bárbaros, impostos, curiosamente, pelo triunfo da ciência e da razão. O caso Terri Schiavo mobiliza e choca o mundo, dividindo radicalmente opiniões, porque, de fato, estamos lidando com a única questão filosófica verdadeiramente relevante – e não é o suicídio, como pontificou Albert Camus, um bom literato disfarçado de filósofo do pessimismo. A única questão filosófica relevante é a vida, ponto inicial de qualquer outra consideração.
Tudo o mais que sabemos ou é conhecimento (ou ignorância) de fenômenos da natureza ou é linguagem, uma construção, portanto, tornada uma outra natureza. Sem a vida, ficamos privados até da oportunidade de não saber. Do mundo natural surgem os fatos, que se impõem; da linguagem, crenças, valores, ideologias, religiões, novos mistérios. Cientistas, desde o Iluminismo, querem-se também eles manifestação da natureza, quando, de fato, integram o grupo da linguagem. Não são o fenômeno, mas apenas uma interpretação dele. A ciência é um código, um conjunto organizado de sinais. Quando muito, oferece uma leitura da realidade, jamais a realidade ela-mesma.
(…)
Podemos e devemos contar com o concurso da ciência para erguer edifícios, mudar o curso dos rios, conter o avanço do mar, estudar a vida dos micro-organismos, desenvolver a engenharia de materiais, recomendar que não consumamos bacon em excesso para que as coronárias não entupam, mergulhar nos meandros na nanotecnologia para encurtar o tempo das operações matemáticas, transformar em vida abundante as potencialidades das células-tronco. Tudo isso torna a vida mais fácil, mais longa, mais prazerosa, mais decente. E, de fato, o conjunto desses conhecimentos diz-nos o quê? Só expõe a nossa formidável ignorância pregressa e faz supor, quando menos por analogia, o que nos falta saber de agora até um ponto qualquer, aleatório, no futuro. À diferença do que supõe o racionalismo de propaganda, cada novo avanço da ciência NÃO expõe a fraude da teologia ou das religiões. Cada novo avanço da ciência o que expõe são os erros pregressos da própria ciência.
(…)
Os argumentos que justificam a interrupção do fornecimento de alimento à moça evidenciam uma fantasmagoria verdadeiramente totalitária na mais importante democracia do mundo. O Estado, com o concurso dos cientistas, arroga-se o direito de decidir qual vida merece ser vivida, estabelecendo, pois, a partir desse caso, quais seriam as condições mínimas aceitáveis. Até o Deus do Velho Testamento aceitava recurso. Quem foi que deu a cientistas e juízes tais direitos?
(…)
Proponho aqui uma questão aos meus leitores: ainda que Terri fosse mesmo um vegetal, porque seus pais e seu irmão não teriam direito de “cultivá-lo”? Por que os juízes decidiram lhes arrancar do jardim da vida – sim, que, então, segundo eles próprios, é vida, mesmo que vegetal – a rosa, a begônia ou o jacinto de sua dor e de seu amor, de seu afeto e de sua tristeza, de seu cuidado e de seu sofrimento? Esse caso me provoca mal-estar. A maioria das pessoas com as quais converso acha tudo muito normal e prefere malhar Bush. Já escrevi aqui algumas vezes que escolheria o catolicismo como religião se ele tivesse me escolhido. Eu prefiro o mundo em que toda a ciência seja considerada divina, desdobramento natural da Graça para elevar a vida humana. O homem, criado à imagem e semelhança de Deus – e, por isso, com a vida inviolável por qualquer outra força -, é uma idéia que nos protege como espécie.
Mas alguns bárbaros do direito e da ciência preferem ser, eles próprios, o Deus que renegam. A morte de Terri Schiavo, nas condições em que se dá, nos expõe ao risco do terror científico. Todo americano deve ter o direito, suponho, de cultivar, se quiser, gerânios na janela. Seus pais deveriam pedir aos juízes americanos que a filha fosse declarada, então, um gerânio, que nenhuma lei impede que seja regado. Os que defendem a medida adotada, mesmo entre nós, podem me mandar e-mails dizendo por que proibir os pais de Terri de cultivar gerânios, podem me dizer por que ela deve morrer seca, esturricada, como uma erva daninha.
eu pai padeceu longamente de um câncer, que depois se generalizou em metástases várias. Todo o meu entendimento com a excelente equipe médica que o atendeu era para usar as drogas disponíveis para amenizar-lhe a dor. A anestesia, esta, sim, traz em si o sopro da divindade, vem nas asas dos anjos. A eutanásia é só a voz suave do demônio. Falo por metáfora. Chamo aqui “demônio” a tentação dos que pretendem assumir o lugar do absoluto por um golpe da vontade, como se os assistisse “o” saber absoluto.
Meu pai já não podia mais se comunicar, mas estava vivo. E, me garantiu o médico, Paulo Zago, não sentia mais dor. Não sofria mais. Até seu último suspiro, que eu não olvidaria esforços para retardar, construí e reconstruí teias de afetos e de lembranças, caminhei pelos desvãos da memória, tentei entendê-lo melhor e a mim mesmo. Queria me fazer, e talvez tenha conseguido, a partir dali, um homem melhor. Meu pai estava vivo porque sua vida, mesmo naquelas condições, vivia em mim, na minha irmã, na minha mãe, nos seus netos, na generosa rede familiar que se criou, incluindo sobrinhos, irmãos, cunhados, amigos, para protegê-lo e dignificá-lo.
Seu corpo ainda morno, embora já não mais emitisse qualquer sinal de consciência, me acolhia e me amparava, cobrava de mim entendimento. Até que não se dê o último suspiro, não tem início o luto, e quem o determina é o inelutável, não um togado arrogante ou um aprendiz desastrado de Deus. Uma vida, nem que seja a de um aspargo, senhores juízes, não vive apenas em si mesma. Existe na circunstância, no mistério dos sentimentos que mobiliza, numa construção que não se esgota nas ciências biológicas ou jurídicas. O assassinato de Terri Schiavo deveria nos ofender gravemente.
*
E assim deveria ser com Charlie Gard.
Devemos lutar por nosso direito de cultivar gerânios.