AULAS, SÓ PARA OS OUTROS 29/09/2017
- CARLOS BRICKMANN - CHUMBOGORDO.COM.BR
Tenho parentes e amigos advogados, aprendi que 11 de agosto é o aniversário da abertura dos cursos jurídicos em Olinda e São Paulo, sei onde ficam as faculdades de Direito da USP e da PUC, tenho os telefones de excelentes fontes de informação sobre questões legais.
Encerram-se aí meus conhecimentos de Direito. Quem sou eu, portanto, para criticar uma decisão do Supremo Tribunal Federal?
Só posso imaginar que tudo aquilo que aprendi na vida, que o Brasil é uma república laica, democrática, em que todos são livres para professar sua religião, ou para não professar religião nenhuma, era falso.
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Pois não é que agora se pode doutrinar os alunos na religião do professor, tornando assunto do Governo uma questão que, acredito, deveria ser individual e familiar?
Enfim, se o Supremo acha que isso não viola a Constituição, deve ter razão.
Não é este analfabeto em Direito que irá contestar sua decisão. Posso apenas contar uma história. A minha história.
Tinha sete anos de idade. Um garoto do Interior, transferido do Grupo Escolar Torquato Caleiro, na Franca, SP, para o Grupo Escolar São Paulo, na capital, ambos da rede pública.
O Grupo Escolar São Paulo (hoje Professora Marina Cintra) era uma boa escola: saí de lá no final do curso primário – os primeiros quatro anos, conforme as normas da época – sabendo ler, escrever, fazer as quatro operações, cantar o Hino Nacional, da Independência, da Proclamação da República, e dizer quem eram os autores de cada um.
Lia sem parar. E, feito o exame de admissão, obrigatório, entrei no principal ginásio público da cidade, a escola-modelo Caetano de Campos.
Tudo bem?
Nem tanto: no grupo havia aulas de religião – ou seja, da religião católica, com catecismo e tudo.
E eu, judeu, saía da classe e ficava no pátio do recreio, sozinho, aguardando o final da aula de religião.
Os demais alunos achavam que eu era privilegiado, por escapar das rezas e ensinamentos edificantes; eu me sentia discriminado, pela exclusão de atividades a que, embora estudante como todos os colegas, não tinha direito.
Não, eu não queria aulas de judaísmo: vovô Jacob, profundamente religioso, estaria sempre disposto a dá-las.
Perto de casa, havia duas sinagogas, onde também poderia aprender alguma coisa, se quisesse (uma delas, aliás, ensinou-me a reconhecer alguns sinais de perigo. Depois que completei 13 anos, idade em que um judeu se torna religiosamente adulto, passei a ter minha presença requisitada nas orações em que faltava o quórum mínimo de dez participantes – o miniam. Quando um grupo de homens formalmente vestidos saía da sinagoga em direção à minha casa, eu sumia antes de ser voluntariado para a tarefa).
Era, como hoje, um judeu consciente, mas não praticante.
Se eu não queria aprender judaísmo, nem catolicismo, de que me queixava?
Da discriminação: em determinado momento, a professora me mandava para fora da classe, separado dos colegas. Eles podiam ficar, eu não podia.
E, talvez já naqueles tempos de garoto, eu tivesse a semente do que hoje penso: religião é assunto pessoal, é assunto de família. Cabe-nos respeitar a crença de todos, tendo como limite que não seja usada para discriminar os outros ou prejudicar a vida diária.
Não quero que, como aconteceu no meu bar-mitzvah, a cerimônia em que passei a ser adulto em termos religiosos, haja uma separação religiosa – boa parte de meus amigos católicos foi informada por padres diversos de que entrar numa sinagoga seria pecado, e muitos não foram.
Prefiro a convivência em que amigas católicas da família, Leda e Maria Regina Caldeira, mandaram rezar a missa de sétimo dia de meu pai na Igreja do Divino Espírito Santo; estivemos todos lá, inclusive meu avô religioso.
Ou a convivência em que subi ao altar da igreja da rua Tutóia para puxar parte da missa de sétimo dia de um grande amigo católico, Ewaldo Dantas Ferreira, e usei uma reza hebraica que é a base de todas as religiões monoteístas (“o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um só”).
Nada daquilo em que acredito combina com a decisão do Supremo de permitir que, numa república laica, haja professores pagos pelo Estado para difundir suas crenças religiosas pessoais.
Mas como podemos nós, pessoas comuns, contestar o Supremo?
Como dizia o lendário juiz americano Oliver Wendell Holmes, que passou 30 anos na Suprema Corte, “juiz não faz Justiça, juiz aplica a lei”.
O Supremo deve entender como aplicar a lei.
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*Jornalista. Diretor do site chumbogordo.com.br. Seu email: carlos@brickmann.com.br.