Um imenso tribunal 01/10/2017
- Luiz Werneck Vianna
Em outros tempos bicudos, não tão distantes desses que aí estão, celebrado poeta popular lançou a profecia de que, no andar da carruagem em que nos encontrávamos, iríamos tornar-nos um imenso Portugal.
A predição não se cumpriu. Aliás, Portugal está muito bem, e as reviravoltas do destino nos conduziram a um lugar de fato maligno, convertendo-nos num imenso tribunal. Vítimas da nossa própria imprevidência, testemunhamos sem reagir a lenta degradação do nosso sistema político – salvo quando o Parlamento introduziu uma cláusula de barreira a fim de evitar uma malsã proliferação de partidos, a maior parte deles destituída de ideias e de alma, barrada por uma intervenção de fundo populista por parte do Supremo Tribunal.
A política, é lição sabida, quando não encontra nas instituições terreno que lhe seja próprio se manifesta em outros, inclusive naqueles criados para uma destinação que, por origem, não lhe deveriam caber.
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Recentemente, vimos como a intervenção da corporação militar que pôs fim ao regime da Carta de 1946, ao banir os partidos e as instituições de representação do povo, trouxe para si o monopólio da atividade política em nome da luta contra a corrupção e de uma suposta subversão comunista.
Caberia a ela a missão de regeneração ética do Brasil e de assentar novos rumos para a modernização econômica do País.
Mas os militares não eram ingênuos nas coisas da política.
Força decisiva na fundação da nossa República, tornaram-se desde então um poder moderador de fato, tendo acumulado longa experiência no trato com a nossa complexa realidade social e política – a trágica intervenção militar em Canudos serviu-lhes de amarga pia batismal e o tenentismo, nos anos 1920, de um processo de seleção dos seus quadros para o exercício do poder que lhe viria, parcialmente, com a revolução de 1930 e de forma plena com o golpe militar em 1964.
Com esse lastro, foram capazes de estabelecer bases sólidas para o regime autoritário que implantaram e alianças políticas que reforçassem seu domínio.
Nessas alianças se mantiveram os seus princípios, em particular os que definiam como objetivos nacionais permanentes, não foram principistas, atentos às consequências e à realidade em torno.
Sob essa orientação fizeram política com as oligarquias que a eles se associaram e as favoreceram para a realização de tópicos significativos de sua agenda de modernização capitalista do País – no caso, exemplar o agronegócio – e lhes assegurarem bases para sua permanência no poder.
Com sua atenção à política, souberam reconhecer a hora da retirada quando seu regime se viu assediado por irrefreável onda de protestos vindos da sociedade civil e da oposição que lhe fazia o MDB no Parlamento, admitindo participar da transição que, mais à frente, nos traria a democracia da Carta de 88, que, por sinal, ora nos cumpre defender das ameaças que a rondam.
Hoje, mais uma evidência do desamor da nossa história pelas linhas retas – nascemos tortos, filhos quasímodos da combinação de uma institucionalidade política modelada nos princípios do liberalismo com a escravidão –, estamos novamente sob o risco de recair no domínio de corporações estranhas à política, no caso as das que se originam no Terceiro Poder, cujo gigantismo entre nós já extrapolou em muito os papéis que o notável jurista Mauro Cappelletti admitia como legítimo nas democracias modernas.
Com efeito, a atual invasão do Poder Judiciário sobre as dimensões da política e das relações sociais não encontra paralelo em outros casos nacionais.
A categórica judicialização da política, que até há pouco designava uma patologia mansa, no caso brasileiro perdeu acuidade, pois se vive à beira de um governo de juízes, a pior das tiranias, visto que dela não há a quem recorrer.
Não se trata agora de um juiz intervir com leituras criativas da lei em casos singulares, uma vez que seu objeto é a própria História do País que se encontra em tela – o Brasil necessitaria, na linguagem dos procuradores, secundada por vários magistrados, “ser passado a limpo”.
Tal operação, que lembra as malfadadas vassouras de Jânio Quadros, não separa alhos de bugalhos e deixa em seu rastro um território infértil para a política num país de mais de 200 milhões de habitantes que não pode prescindir dela para enfrentar suas abissais desigualdades sociais e regionais.
Decerto que a chamada Operação Lava Jato tem produzido efeitos benfazejos e, nesse sentido, precisa ser preservada, desde que expurgada dos elementos messiânicos que a comprometem e têm caracterizado a ação de muitos dos seus protagonistas, inebriados pelos aplausos dos incautos e dos pescadores em águas turvas.
O gênio de Gilberto Freyre já nos tinha advertido de que a especificidade da civilização brasileira se caracterizava em pôr antagonismos em equilíbrio, tópica bem estudada por Ricardo Benzaquen de Araújo em seu belo Guerra e Paz.
Aqui, a tradição e o arcaico têm convivido com o moderno e a modernização, e temos sabido tirar proveito dessa ambiguidade para forjar nossa civilização.
Somos, pela natureza da nossa formação, compelidos às artes da dialética, e a ética puritana nunca medrou entre nós, que mantemos parentesco com o barroco – tema bem desenvolvido por Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (B.H, UFMG, 1998).
Entre nós, equilibrar antagonismos foi operação que coube à política, cenário bem diverso do caso americano, que, no celebrado argumento de Tocqueville, reduziu a um mínimo, pela feliz conformação da sua formação histórica, a intermediação dessa dimensão na vida social, dado que estaria animada desde sua origem por práticas de auto-organização.
Banir ou suspender a atividade política a pretexto de moralizá-la é nos deixar no vácuo, entregues a um governo de juízes ou a uma recaída num governo militar, e esse é um desastre com que contamos tempo para evitar.