O limite do poder estatal 06/10/2017
- O ESTADO DE S.PAULO
O ministro Celso de Mello lembrou o óbvio – que a Constituição representa o “limite insuperável ao exercício do poder estatal” – ao proferir seu voto, em julgamento no Supremo Tribunal Federal, contra uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que fez retroagir os efeitos da Lei da Ficha Limpa para manter a inelegibilidade de um político que já havia cumprido a pena prevista pela legislação anterior.
E a Constituição, a esse propósito, não deixa dúvidas ao estabelecer, em seu artigo 5.º, inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Não obstante essa clareza meridiana, o voto de Celso de Mello foi um dos vencidos, em uma das decisões mais extravagantes da história do Supremo: a última instância judicial do Brasil, justamente a que serve de guardiã do texto constitucional, borrou o mencionado limite ao exercício do poder estatal ao avalizar a aplicação de punição prevista na Lei da Ficha Limpa para um caso ocorrido antes da existência da lei.
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Desse modo, prevaleceu o arbítrio, situação que abre precedente para punir qualquer um, a qualquer tempo, em franco desafio ao que também estabelece o artigo 5.º da Constituição, que em seu inciso XXXIX diz que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Se há a menor controvérsia sobre esse diploma no Supremo Tribunal Federal, como parece ser o caso, pode-se dizer, sem exagero, que ninguém está a salvo do arbítrio judicial no País.
O caso em questão diz respeito a um vereador do município baiano de Nova Soure, que havia sido considerado inelegível como punição por abuso de poder econômico e compra de votos em 2004.
Na ocasião, a Lei Complementar 64/1990 estabelecia inelegibilidade de três anos. Cumprido esse prazo, o político tornou a se candidatar e se elegeu em 2008.
Quando foi registrar sua candidatura nas eleições de 2012, primeiro pleito em que passou a vigorar a Lei Complementar 135/2010, apelidada de Lei da Ficha Limpa, o vereador teve o registro indeferido pelo TSE, sob o argumento de que a punição para casos como o dele não era mais de três anos, e sim de oito anos, conforme previa a nova legislação.
Portanto, o TSE considerou que o político ainda tinha contas a acertar com a Justiça – embora seu caso já tivesse transitado em julgado e a pena de inelegibilidade já tivesse sido integralmente cumprida.
A simples descrição do caso deveria servir para evidenciar a inconstitucionalidade da decisão do TSE, cabendo ao Supremo apenas revertê-la.
Mas, por 6 votos a 5, a Corte entendeu que a inelegibilidade não está no âmbito do direito penal e, portanto, não está submetida ao princípio da irretroatividade da lei mais grave.
Para o ministro Luiz Fux, autor de um dos votos vencedores, o regime jurídico das condições de elegibilidade e das hipóteses de inelegibilidade “se ancora em critérios políticos e legislativos que possuem racionalidade e fundamentos diversos da natureza das sanções”.
Como exemplo desse raciocínio exótico, Fux citou o caso dos analfabetos, que são inelegíveis não em razão de sanção penal, e sim segundo os critérios de elegibilidade, que só serão considerados no momento do registro da candidatura.
Assim, no instante em que tentou registrar sua candidatura nas eleições de 2012, o político em questão não cumpria os requisitos de elegibilidade, segundo a nova lei em vigor.
Seguiram essa estranha lógica os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Dias Toffoli, além da presidente do Supremo, Cármen Lúcia, que desempatou.
Ao pronunciar seu voto contrário a tal absurdo, o ministro Marco Aurélio Mello foi corretamente enfático ao salientar que “a sociedade não pode viver em sobressaltos, muito menos sobressaltos provocados pelo Supremo” e que “retroação da lei é o fim em termos de Estado Democrático de Direito”.
O ministro Gilmar Mendes chegou a dizer que a Constituição estava sendo “rasgada”.
Tudo isso se dá em nome de uma ideia de moralização da política que, levada a extremos hermenêuticos, pode significar o fim do regime de garantias constitucionais que caracteriza uma democracia.