O medo que nos une 19/10/2017
- FERNÃO LARA MESQUITA - ESTADÃO/VESPEIRO.COM
O desastre brasileiro só se vai aprofundar se continuarmos discutindo “por que” ou “quando” a imunidade dos mandatos parlamentares deve ser suspensa.
A discussão que resolve é apenas e tão somente a sobre “quem” deve ter o poder de fazê-lo, até mesmo sem ter de dar satisfação a ninguém sobre o quando ou o por que se decidiu a isso.
O “parágrafo único” do Título I, “Dos Princípios Fundamentais”, da Constituição diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
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Daí o texto deveria saltar para o Título II, que deveria tratar de empoderar o eleitor para fazer valer o I, se essa Constituição acreditasse em suas próprias palavras.
Mas não. Há cinco “jabutis” antes e mais pelo menos uma dúzia enfileirados depois desse “parágrafo único” para negar o que ele afirma e tutelar a vontade popular, que deveria ser soberana.
E do Título II em diante segue sempre assim.
Nem no STF, nem no Legislativo, nem mesmo nos debates mediados pela imprensa sobre a imunidade parlamentar, instituto que visa a proteger o representado, e não a pessoa do representante, muito menos um cargo, a palavra “eleitor”, esse tal de “povo” de quem todo poder deveria emanar, chega a ser mencionada.
Os três Poderes não só estão livres para cassar representantes eleitos e inverter a seu bel-prazer até o que o eleitor afirma em plebiscitos (como o do desarmamento), eles são cobrados pelos cidadãos supostamente mais ilustrados do País a assumir o papel que deveria ser exclusivo deles de decidir quem continua e quem sai, e quando, do jogo da – é sempre bom lembrar o nome – “democracia representativa”.
São os cidadãos mais ilustrados e mais genuinamente imbuídos de civismo que, reagindo uns aos outros intoxicados por ondas de indignação adrede semeadas, exigem, “em nome da democracia”... que se extinga a democracia, seja com juízes, seja com a articulação de cúmplices no crime, seja com soldados.
Em plena era da informação é difícil sustentar que essa inversão decorra apenas de falta de informação.
Trata-se de um vício bem mais entranhado.
A verdade é que o que irmana esquerda, direita e centro desde sempre no Brasil é a desconfiança que todos têm do povo.
Considere o Estado brasileiro. Considere a Petrobrás, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, o BNDES e as 150 “brases” coadjuvantes no nosso escândalo sem fim.
Sai Império entra República, as gerações chegam e se vão, direita e esquerda sucedem-se no poder e as histórias são sempre as mesmas.
Só muda o grau da desfaçatez, que vai ficando tanto maior quanto mais óbvia se vai tornando a coisa.
O Brasil e o mundo inteiro sabem que empresa e banco estatal só existem para serem roubados.
O Brasil e o mundo inteiro sabem que desenvolvimento de verdade só há onde essas excrescências que tratam de justificar-se em nome dele são proibidas.
Se quisessem mesmo que o País deixasse de ser roubado, o primeiro alvo de toda essa gente que anda de dedo em riste por aí estaria pra lá de definido.
Mas quanto mais roubam o País por meio delas, mais proibido se torna falar em nos livrarmos das estatais.
Qual é o mistério?
Nenhum.
Ao redor das empresas estatais e de quem vive específica e confessadamente de roubá-las estão os empregos nas estatais e no serviço público que a alta classe média, “vocal” e politicamente organizada, reserva “aos seus”.
Os donos do Estado estendem a ela o regime de privilégios em que vivem de modo a estabelecer a cumplicidade que lhes permite entrar e sair de seus cofres à vontade para comprar e recomprar o poder de continuar eternamente a fazê-lo.
Como os empregos públicos, os das estatais também vêm com a garantia da estabilidade eterna, com muito mais salários do que há meses no ano, cercados de “auxílios” isentos de impostos extensivos a toda a raça do agraciado já nascida e ainda por nascer, com aposentadorias precoces por valores muito maiores que os comprados pelas contribuições e dispensada da corrida maluca pela apresentação de resultados.
São tão sólidas as garantias de “petrificação” eterna desses “direitos” instantaneamente extensíveis a toda a “privilegiatura” assim que “aquiridos” por qualquer membro individual dela que até os banqueiros, que jamais poderão ser acusados de inclinações altruísticas, lhes concedem crédito para consumo a juros descontados, constitucionalmente assegurados que estão de que o favelão nacional será sempre chamado a pagar a conta nas marés de inadimplência.
Quanto mais miserável esse sistema medieval de servidão faz a Nação neste mundo de competição feroz, mais absolutamente o concurso público, único canal de passagem da nau dos explorados para a nau dos exploradores, afora as nomeações, que são ainda mais explícitas, passa a ser um atestado de rendição.
E isso cria um Brasil oficial sem pressa e moralmente entregue desde a partida, com tempo e dinheiro bastantes para tomar de assalto todos os canais de expressão política da Nação, e um Brasil real mudo que aprende a amargas penas que nem correr muito fará qualquer diferença.
O preço disso é a guerra.
60 mil mortos por ano, por enquanto, e piorando por minuto.
Solução só tem uma.
Entregar o poder a quem paga a conta.
Instituições políticas são uma tecnologia como outra qualquer e a que foi batizada “democracia”, testada e aprovada, pode ser reproduzida sem pagamento de royalties.
Poder absoluto para o eleitor interferir a qualquer momento em cada pequeno pedacinho do País é o remédio sem o risco da intoxicação.
E isso se faz tirando os porteiros da entrada e escancarando as portas de saída tanto da política quanto do serviço público com eleições distritais, que definem quem é representante de quem, retomada a qualquer hora de mandatos concedidos e empregos contratados sem entrega de resultados e poder de referendo das leis como garantia de uma reconstrução sadia.
Como se faz?
Querendo.
O Brasil só precisa decidir se quer mesmo democracia, ou seja, o povo no poder.