Fake news – o tamanho da encrenca 09/11/2017
- EUGÊNIO BUCCI*
“O facto de dizer a verdade de facto compreende muito mais que a informação quotidiana fornecida pelos jornalistas, ainda que sem eles nunca nos pudéssemos situar num mundo em mudança perpétua” - Hannah Arendt, em "Verdade e Política".
Entre outros tantos pontos de interesse, o ensaio Verdade e Política, publicado originalmente na revista The New Yorker em 1967, traz um alerta de rara densidade filosófica sobre a função essencial da imprensa na democrática.
Hannah Arendt não defende interesses corporativos de donos de jornal nem reproduz doutrinas liberais com frases feitas.
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Sem nenhum parti pris a favor da mídia, ela enxerga um cenário menos maniqueísta, em que as versões da realidade se entrecruzam em direções pouco previsíveis – e nos convence de que a verdade de fato (ou a verdade factual) precisa mesmo ser tomada como a “própria textura do domínio político”.
Isso quer dizer que se não houver a verificação dos fatos, realizada segundo os procedimentos consagrados da reportagem jornalística, a política se afasta do que deveria ser, pois terá perdido sua relação com a verdade.
A filósofa insiste que a política deve, sim, basear-se nos fatos, mas adverte: quem apura os fatos não são os políticos, mas os jornalistas, ao lado de outros profissionais que têm em comum a característica de não pertencerem ao campo político.
É uma distinção crucial.
A verdade dos fatos, investigada e verificada por um trabalho que não presta contas – nem deve prestar – a interesses políticos, assenta-se como um patrimônio comum da sociedade, onde se expõe à dinâmica natural do debate público.
A partir daí se incorpora ao discurso político.
Quando o discurso político usurpa a função de estabelecer a verdade factual, o que temos é o autoritarismo ou mesmo o totalitarismo.
Para a saúde da política na democracia é indispensável que a função da verificação dos fatos não se confunda com a função do discurso político, ou a política não terá mais como ser fiscalizada por observadores críticos situados fora de seus domínios.
Isto posto, o que dizer de uma política que se faz cada vez mais – e cada vez mais ostensivamente – a despeito dos fatos?
O que dizer de políticos que agem e falam como se desprezassem os fatos?
O que dizer, ainda, das multidões que se compactam em torno de mentiras escarradas?
Por certo, como todo mundo sabe, a mentira sempre compareceu à política, mas, vamos e convenhamos, a ordem de grandeza das mentiras políticas da atualidade desafia todos os patamares anteriores.
O fenômeno contemporâneo do populismo não é outro senão a formação de pactos de massa em torno de mentiras de pernas relativamente curtas e de consequências um tanto tenebrosas – à esquerda ou à direita, tanto faz (como de costume).
Diante desse quadro, e do refluxo dos indicadores da qualidade das democracias no mundo, a imprensa tem conseguido fazer pouco, ou muito pouco.
Há sinais de reação nos Estados Unidos, como o crescimento da carteira de assinantes do New York Times diretamente relacionado a um despertar do público diante das fraudes difundidas por Donald Trump, mas ainda é pouco.
As parcelas majoritárias da sociedade, até mesmo nos países mais ricos, preferem se informar pelas redes sociais.
As bolhas de opiniões mais ou menos extremadas, impenetráveis ao dissenso, reconfiguraram as bases sociais de lideranças mentirosas e polarizadas.
A imprensa não consegue desmontar essas mentiras, por mais que sejam meritórios os esforços de fact checking.
A adulteração da verdade factual se apossou da “textura do domínio político”.
As redes sociais não devem ser interpretadas como o mal em si. Elas trouxeram arejamentos preciosos para a vida social. Foram fundamentais na Primavera Árabe e nas manifestações de 2013 no Brasil.
O problema – novo – é a sua conformação nos moldes de uma indústria do imaginário global e monopolista, que desarranjou por inteiro a esfera pública.
As escalas são completamente outras. O Facebook tem atualmente algo como 2 bilhões de perfis ativos no mundo.
A comparação com uma carteira de assinantes de um jornal brasileiro expõe o abismo: o Facebook tem aproximadamente 10 mil vezes mais “leitores” fiéis do que um grande diário de qualidade no Brasil.
Nessa conta, a imprensa é um dado marginal e desprezível.
O “modelo de negócio” dessa nova indústria do imaginário é genial e mortífero.
Nas redes, o usuário é ao mesmo tempo a mão de obra (gratuita), a matéria-prima (gratuita) e a mercadoria (bilionária).
Uma empresa como o Facebook, esse monopólio global, não precisa contratar digitadores, fotógrafos, roteiristas, desenhistas, nada; seus usuários, crentes de que se estão divertindo e usufruindo um “serviço” gratuito de “inovação tecnológica”, fazem tudo isso de graça.
A matéria-prima são as histórias pessoais dos usuários: uma foto sem camisa na piscina do condomínio, um prato de comida com geleia colorida pincelada ao fundo, um gato com cara de cachorro, um vídeo de colóquio acadêmico.
E qual a mercadoria?
Os olhos dessa gente que entrega de graça (e feliz) sua mão de obra e sua mercadoria.
Os clientes são os anunciantes, que abandonam em massa os órgãos de imprensa – que, desgraçadamente, ainda têm de pagar pelo trabalho de repórteres, editores, diretores...
O que orienta a circulação dos “conteúdos” é o desejo dessa massa de escravos gozosos e sorridentes.
A informação política que circula nas redes não precisa prestar contas aos fatos; sua função é reafirmar preconceitos, promover a reafirmação narcísica das multidões homogêneas, multidões de mesmos.
A informação supostamente política virou definitivamente um item de entretenimento.
Mentirosa ou verdadeira, ora, isso é o de menos.
As multidões não sabem situar-se “num mundo em mudança perpétua”.
Descartaram a imprensa.
A vitalidade da esfera pública abana um adeusinho de longe, talvez pelo Twitter.