Transição atribulada 18/11/2017
- MARIO CÉSAR FLORES*
A crise que flagela o País é mais uma da turbulenta evolução pós-1930: aumento da população – de 40 milhões para 207 milhões, hoje a quinta população do mundo –, industrialização acelerada e urbanização desordenada.
Da revolução de 1930 até hoje vivemos dois períodos autoritários – 1937-1945 e 1964-1985 –, o segundo com guerrilha rural e urbana; a Revolução Paulista de 1932, a Intentona Comunista de 1935 e o putsch integralista de 1938; a participação na 2.ª Guerra Mundial contra o Eixo, depois de discreto flirt com o fascismo; suicídio de um presidente; renúncia de um presidente e resistência à posse do vice, resolvida por uma pífia experiência parlamentarista; impedimento de dois presidentes; quatro (!) Constituições; forte ingerência estatal na economia; surtos de inflação e seus planos salvacionistas; três (!) trocas de moeda; protecionismo chauvinista e sua política de substituição das importações; organização do trabalho e sindical à sombra do Estado; greves danosas à vida nacional; aumento da criminalidade e insegurança pública – e por aí vai...
Um mosaico de atribulações contaminadas por inquietação institucional e conflitos políticos, pela guerra fria, pela ofensiva global do socialismo, pela fantasia terceiro-mundista, pela integração econômica global e pela ilusão mística do populismo.
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A condução política da atuação direta do Estado (saúde, educação, segurança...) ou normativa, indutora e fiscalizadora (economia) não respondeu aos desafios da transição tumultuada.
A responsabilidade cabe basicamente à condução política, com um complemento que agrega culpados: na evolução demográfica a qualidade não acompanhou a quantidade. Houve pequena – se tanto – melhora na educação elementar da base da pirâmide social, mas o preparo para a cidadania continuou precário.
E nos estratos médio e superior predominou a especialização coerente com o desenvolvimento; a cultura se retraiu, sobretudo na política.
É esse perfil de consciência cidadã que – ressalvados os períodos autoritários – escolhe os atores do nosso melancólico enredo político.
Além de não cercear vícios tradicionais – patrimonialismo, clientelismo e corrupção –, a Constituição de 1988 permitiu outros.
Em evidência: instituiu um modelo de Federação indutor da vassalagem financeira à União.
Moldou uma sistemática político-eleitoral que vem produzindo ficções partidárias sem consistência, unidas ou em conflito mais por recursos e cargos do que por ideias; o trato pelos deputados da denúncia contra o presidente reflete essa conduta capenga: embora não se tratasse de julgamento de mérito, é moralmente frágil a decisão política depender do escambo (voto x interesse), à revelia da convicção de culpa ou inocência. Manteve o Estado gigante na economia – e corrupto na proporção do gigantismo. Consolidou um modelo de walfare State (nele a Previdência) incompatível com a realidade fiscal da União, dos Estados e municípios.
Concedeu ao serviço público o direito à sindicalização e à greve, dotando a máquina do Estado gigante com condições legais para pressionar por vantagens alheias à lógica fiscal e ao quadro salarial brasileiro, para resistir à redução do gigantismo estatal, que lhe é conveniente.
E citado aqui porque afeta a crise atual, sobrecarregou o Supremo Tribunal Federal, Corte constitucional, com ações penais do nosso imenso foro privilegiado.
Nos anos 1930 foi fácil para o poder revolucionário extinguir o carcomido Estado da República Velha e sua democracia oligárquica.
Está sendo difícil corrigir hoje vícios e equívocos da República de 1988, respeitado o paradigma constitucional – a ser respeitado, mas não usado para proteger interesses, a exemplo deste paradoxo insólito: o reflexo eleitoral da posição do congressista em correções ditas impopulares o leva a se manifestar contrário ao interesse do País, à solução de problemas que projetam um futuro dramático.
O povo acredita nas retóricas interesseira ou populista que minimizam as correções a título de protegê-lo, ou não se interessa por conhecê-las e entendê-las – as alternativas da sistemática eleitoral, por exemplo.
O padrão das reformas vai pautar o País que teremos e isso preocupa.
A lassidão cultural e a política brasileira, cujo desempenho não acompanhou (léxico tolerante...) a complexidade crescente do País, já sugerem naturalmente a improbabilidade de mudanças que de fato atendam à necessidade.
E o tumulto político e institucional que estamos vivendo cria situações em que o interesse nacional é superado pelo político, paroquial e pessoal – problema bem refletido na deprimente (para a democracia) ideia de que será difícil “tocar” a Previdência porque o governo já gastou sua “gordura” no escambo das denúncias contra o presidente.
Mas se a despeito dessas dificuldades o saldo do processo reformista for satisfatório, ainda que não o improbabilíssimo ideal, o Brasil estará mais capacitado para superar as atribulações da longa transição histórica de país rural com democracia oligárquica para país urbano, industrializado e com a quarta democracia de massa do mundo.
Ter-se-á evitado a continuidade da perda da fé na democracia e do correlato crescimento da esperança – de que já existem sintomas e manifestações simpáticas – em alternativas messiânicas à direita e à esquerda, sancionadas pelo voto desiludido com o status quo e iludido por fantasias populistas e salvacionistas ou seduzido por visões redentoristas nostálgicas.
Incluídas alternativas messiânicas populares, que não seriam novidade histórica: aferido pelo apoio do povo, o Estado Novo carismático de Getúlio Vargas teria sido uma ditadura popular...
A pergunta que se impões no fim de texto da natureza deste é: as reformas possíveis serão satisfatórias?
Os interesses influentes nos partidos e a turbulência política que provavelmente se estenderá no cenário eleitoral de 2018 não inspiram muita esperança.