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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Que grande confusão
02/12/2017 - MIGUEL REALE JUNIOR*

Oito ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram só terem direito ao foro privilegiado os parlamentares acusados por crimes cometidos no exercício do mandato e desde que os fatos tenham relação com o cargo ocupado.

Além do mais, como explicou o ministro Barroso, aplica-se essa restrição do foro apenas a deputados federais e senadores, dado constante da ementa e confirmado pela presidente Cármen Lúcia em entrevista ao Estado de domingo passado, 26/11.

A questão do foro privilegiado para deputados e senadores tem mobilizado a sociedade, que, com razão, vê na circunstância de estarem os parlamentares submetidos ao STF o motivo de os processos serem lentos, indo à prescrição, estando em tramitação na Alta Corte cerca de 500 feitos criminais, entre inquéritos e ações penais.


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Já escrevi sobre essa matéria nesta página, propondo não a completa supressão do foro dito privilegiado, mas sua limitação e transferência, por exemplo, no caso de parlamentares federais, do STF para os Tribunais Regionais Federais, de acordo com o local do crime, dotando-se o julgamento de celeridade e independência, sem duplo grau de jurisdição.

Assegurar a imparcialidade do Juízo constitui a razão fundamental justificadora do foro por prerrogativa de função, que não deve ser criado como privilégio para o indivíduo ocupante de cargo.

O que se visa, timbro em repetir, é a garantia de autonomia de uma autoridade judiciária de maior hierarquia, possuidora de força capaz de resistir às pressões do réu titular de posição de poder.

Assim, o juiz é de ser julgado pelo Tribunal de Justiça, o promotor também, bem como o deputado estadual. O desembargador sujeita-se ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro do STJ ao STF, ao qual se submete também o ministro de Estado.

A bela frase de que todos devem ser iguais perante a lei soa bem, mas esquece a realidade.

Há os detentores de poder que podem usar sua força política para constranger o juiz de primeira instância neste imenso país.

Nem todos os magistrados têm a fibra e o respaldo para enfrentar constrangimentos impostos pelos poderosos.

Veja-se a hipótese de juiz de pequena comarca julgando um desembargador que bateu no vizinho de sua casa de campo: a que pressões poderia sempre resistir?

Nunca foi a natureza do fato relacionado ao cargo que ditou a competência dos tribunais, sendo esse um conceito aberto sujeito a toda subjetividade.

É essa uma novidade surgida na recente posição do STF, bem como a exigência de o fato ter sido praticado durante o exercício do mandato, pois sempre o foro privilegiado decorreu apenas do cargo, para impedir a possibilidade de o réu, titular de cargo, vir a constranger o julgador.

A solução de retirar os parlamentares federais da competência do STF foi festejada pela população, mas só trará problemas sérios, concorrendo para consagrar a impunidade que se busca eliminar.

Vamos ver por quais razões.

Imaginemos que o parlamentar tenha obtido a nomeação de vice-presidente da Caixa Econômica Federal e, agindo por via de operador, vislumbrado a possibilidade de concessão de empréstimos a grande empresa, com o dinheiro do FGTS, administrado pela Caixa, a juros baixos.

Contando com a conivência do fâmulo vice-presidente do banco, a vantagem do mútuo favorável é concedida, exigindo o parlamentar do mutuário parte do benefício obtido.

Está relacionado à função parlamentar o fato de deputado influir na nomeação em órgão do Poder Executivo e conseguir a aprovação da concessão de mútuo, exigindo vantagem ilícita do mutuário como condição do negócio?

Se é conduta “própria” ou não do cargo de deputado caberá ao STF decidir, em questão a ser explorada pela defesa do parlamentar desonesto, paralisando-se o processo. E o STF terá mais trabalho.

Além do mais, a solução é incoerente: se deputado estadual fizer algo semelhante em órgão estadual, será julgado pelo Tribunal de Justiça, sem recurso; mas o deputado federal, no caso de propina originária da Caixa Econômica Federal, poderá ser julgado por juiz de primeira instância, com direito a apelação. O processo demorará mais.

Se um senador tentar beijar à força no gabinete a sua secretária, o fato relaciona-se com o exercício do mandato?

Tome-se outro caso: o processo contra o ex-ministro Paulo Bernardo e sua mulher, a senadora Gleisi Hoffmann.

O fato deu-se em 2010, quando Paulo Bernardo era ministro do Planejamento, mas Gleisi apenas candidata ao Senado.

Como garantidores da mantença de Paulo Roberto Costa em diretoria da Petrobrás, receberam propina decorrente de contratos fictícios de empresas construtoras com a Petrobrás.

Com relação a Gleisi, pelos dois critérios adotados não haveria competência do Supremo.

Gleisi não era senadora e o crime não dizia respeito ao mandato de parlamentar.

No entanto, o marido era ministro e a propina estava relacionada com o exercício do cargo de ministro do Planejamento.

Todavia hoje o processo, em sua reta final, está no STF por Gleisi ser senadora, já que Paulo Bernardo não ostenta nenhum cargo.

Aplicada a nova orientação, o caso seria deslocado para primeira instância em vista de o crime ter ocorrido antes de Gleisi ser eleita.

Mas, pelo mesmo critério, deveria permanecer no Supremo, pois praticado por ministro de Estado, em fato relacionado com o cargo então ocupado.

Porém, segundo a ementa do STF, os critérios de a conduta ser praticada no exercício do cargo e relacionada às suas funções não se estendem a ministros.

Dois pesos e duas medidas: vale para deputados e senadores, mas não para ministros.

E por quê?

Para livrar o Supremo da carga elevada de processos criminais existentes pelo fato de grande parte dos réus ser formada por parlamentares federais.

Que grande confusão haverá!

...

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça


  

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