Natal envergonhado 20/12/2017
- Aylê-Salassié F. Quintão*
É Natal. Alienação, anomia ou preguiça de pensar? Nada disso. É duro tomar conhecimento de que em 30 anos, o Brasil cresceu menos que o resto do mundo, pontua o nosso guru e economista capixaba Guilherme Pereira.
O PIB só superou a inflação duas vezes. Distraídos, nem percebemos.
Nesse período tivemos o reinado quase absoluto das pós-verdades, dos índices manipulados e dos egos inflados.
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Os efeitos só foram conhecidos, parcialmente, depois que a Lava Jato começou a condenar e a prender, descortinando, como nunca, a escalada da corrupção endêmica que tomou conta do País ao longo dessas três décadas, sob os nossos olhos esperançosamente extrovertidos.
Cada governo, cada partido, cada político forjou uma narrativa falsa do sucesso na educação, no saneamento, na saúde, nos investimentos e até para o Orçamento.
Chegou-se a propagar um superávit na Previdência, a extinção da dívida externa, e a intenção brasileira de ingressar, como membro, na Organização dos Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP).
De tanto forjar e repetir lorotas alguns políticos foram contaminados por elas.
Acabo de ler um material sobre a indiferença do povo alemão com a política e os governantes, após a Segunda Guerra.
Com o país arrasado e ocupado, a população foi tomada por um estado de anomia, não de alienação.
Calara-se, humilhantemente diante dos discursos ufanistas, e depois da realidade dramática que estava a se descortinar no pós-guerra.
Os alemães assistiram, imobilizados, o país ser leiloado por estranhos.
Entre nativos, já não havia inimigo, nem amigo; situação ou oposição.
Todos eram vítimas de todos e, ambiguamente, também responsáveis pelo o que acontecera.
Ninguém podia, de fato, posar de inocente.
Haviam, sim, caído no conto do vigário.
A população tinha consciência de que a única reação possível era trabalhar duro para recuperar a unidade nacional, e isso exigiria sacrifícios ainda maiores.
Para começar, o povo alemão passou a refutar toda mitologia e mitomania criada a partir das ideologias.
O cidadão começou a se preocupar com a sobrevivência individual e, com ela, com a reconstrução do país.
Entrou em estado de completa indiferença.
Ignorava conversa fiada até mesmo de quem aparentemente chegava para ajudar.
Passou a cultivar a desconfiança política e a trabalhar intensamente para recompor as matrizes da existência.
Teve de engolir as duas Alemanhas.
Com esse escopo, uma se desenvolveu pelo esforço individual e a livre iniciativa; e outra, sob opressão, ganhou características de Terceiro Mundo.
O processo de unificação, logo após a queda do muro de Berlim, com aquele povo todo correndo do lado da República Democrática para o da República Federal (ocidental), mostra o fracasso de um regime centralizador e o êxito do outro construído pela população.
Berlim Oriental não deixou legados, senão pequenas marcas.
Os políticos brasileiros não querem perceber que há na sociedade um silêncio angustiado e profundo, quase um grito preso na garganta, contra as leviandades a que foram submetidos os cidadãos nesses últimos trinta anos.
Há nesse silêncio uma vergonha nacional incubada e uma ameaça latente da possibilidade de uma reação coletiva, como em 2013, contra aqueles que fazem de conta que nada aconteceu no País, ou que nada acontece.
No Brasil, como na Alemanha, o comportamento da população não pode ser chamado propriamente de alienado.
Trata-se de um silêncio constrangido, dentro do qual se esconde um desprezo crescente pelo cinismo institucionalizado que não se restringe ao Congresso.
Está espalhado por todas as esferas, inclusive dentro do Judiciário, onde são produzidos desvios interpretativos da lei e jurisprudências de oportunidade.
O Mensalão e a Lava Jato levantaram as cortinas das falsidades.
Aproximadamente 52 milhões de pessoas com renda média abaixo de dois salários mínimos e 11 milhões de jovens desempregados mostram-se distantes da desavergonhada armadilha que os políticos profissionais tentam desenterrar na expectativa de uma indução prévia (e ilegal eleitoralmente) de uma suposta polarização na disputa pela sucessão presidencial, ressuscitando a divisão social.
Na Alemanha, a unidade nacional e o silêncio envergonhado da população, acompanhado de muito trabalho, fizeram emergir do caos, em menos de 20 anos, um país que se tornaria o carro chefe da Europa.
Por lá, o Natal está em todos os lugares hoje.
Para o Brasil, depois de 30 anos enganado, o povo reserva provavelmente aos políticos um índice elevado de abstenção eleitoral.
Mesmo se reconhecendo ludibriados, o silêncio daqueles que também não podem se dizer inocentes potencializa um Natal nostálgico e, para 2018, uma rejeição ampla nas urnas e intimidadora nas ruas.
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*Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília.