O erro crasso de Cármen Lúcia 03/04/2018
- Sérgio Praça - Veja.com
Em pronunciamento ontem na televisão, a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, disse algumas palavras bonitas. Geralmente discursos políticos são pouco interessantes e não tenho paciência para eles. Mas este vale o comentário.
A ministra disse, entre outras coisas, que:
* (É preciso ter) “serenidade para que as diferenças ideológicas não sejam fonte de desordem social”
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* “O fortalecimento da democracia brasileira depende da coesão cívica para a convivência tranquila de todos. Há que serem respeitadas opiniões diferentes”
* “Diferenças ideológicas não podem ser inimizadas sociais. A liberdade democrática há de ser exercida sempre com respeito ao outro”
* “A efetividade dos direitos conquistados pelos cidadãos brasileiros exige garantia de liberdade para exposição de ideias e posições plurais, algumas mesmo contrárias. Repito: há que se respeitar opiniões diferentes”
O pano de fundo, óbvio, é a decisão de amanhã, quarta-feira, sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula (PT).
Os onze juízes do STF decidirão se condenados em segunda instância (ou seja, por um colegiado de juízes) devem passar a cumprir suas sentenças imediatamente ou se devem esperar o “trânsito em julgado” – ou seja, a terceira e quarta instâncias (o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal).
É possível que a decisão seja abrangente, referindo-se a todos os casos, ou específica, apenas para o de Lula.
Impossível saber, por enquanto.
Antes de mais nada, vale lembrar que o STF é um antro de leniência com corruptos.
Quem tem foro privilegiado – como ministros e parlamentares – é investigado e julgado pelo Supremo.
Com raríssimas exceções, os onze juízes sentam em cima dos processos até que eles percam a validade.
(É com essa pitada de sal que se deve adocicar os discursos indignados de Luís Roberto Barroso contra pilantras.)
Bem, Cármen Lúcia refere-se a ideologia e “opiniões diferentes”.
Mas não é isso que estará em jogo amanhã, nem na atuação do STF com relação a casos de corrupção.
“Ideologias” são sistemas duradouros de crenças que indicam ações a serem tomadas em uma série de circunstâncias políticas, segundo a definição da cientista política Kathleen Bawn.
Ainda de acordo com ela, ideologia é muito importante na política porque estimula as pessoas a se importarem com assuntos sobre os quais elas não têm interesse direto (direct stake – “interesse” não é a tradução ideal, mas enfim).
O problema é que a condenação após segunda instância não seria, de acordo com a definição de Bawn, uma questão ideológica.
Não há sistemas de crenças legítimos que possam ser favoráveis ao “trânsito em julgado”, pois não respeitam, na prática, a igualdade perante a lei.
Tais sistemas de crenças existem, é claro.
São compartilhados por vários advogados criminalistas e jornalistas.
Mas não têm espaço em uma democracia republicana, na qual a lei vale igualmente para todos.
É inacreditável ainda ter que escrever isso em 2018.
Não quero dizer, com isso, que pessoas favoráveis à execução da pena após a segunda instância sejam incríveis.
Deltan Dallagnol está fazendo greve de fome e Marcelo Bretas reza mais do que são-paulino em clássico.
Ambos recebem auxílio-moradia.
É um benefício legal, consagrado em normas jurídicas, dado aos agentes da Justiça sejam eles tementes a Deus ou ao Fagner.
É, também, contra o espírito de uma democracia republicana.
Auxílio-moradia para quem tem residência onde trabalha não faz sentido algum.
É o senso comum – nesse caso, corretíssimo – ignorado quando há skin in the game.
Voltando a Cármen Lúcia: não são, ministra, divergências ideológicas que estarão em jogo na quarta.
Isso se resolve nas urnas, no Twitter, no Facebook, nos almoços de domingo.
É algo bem mais profundo.
É o direito que todos nós temos de sofrer igualmente as consequências da lei.
Lula, Temer, Aécio etc. não são especiais porque exercem (ou exerceram) cargos políticos.
Quem tem dinheiro e paciência para esperar o “trânsito em julgado” até que seu crime prescreva tem, na verdade, um privilégio ilegal, imoral e contra o espírito dos belos artigos da Constituição de 1988.
Os onze juízes do Supremo Tribunal Federal têm oportunidade inédita para justificar os cargos que ocupam.