A banalidade do mal estampada na crise da Venezuela 07/05/2018
- MOISÉS NAIM*
A banalidade de Nicolás Maduro só é superada por sua crueldade. Que a maldade pode ser banal isto já nos foi explicado por Hannah Arendt.
Depois de assistir ao julgamento de Adolf Eichmann em 1961, ela escreveu que sua maior surpresa foi descobrir o quão banal era esse ser humano monstruoso.
Eichmann foi um dos principais organizadores do Holocausto, quando foram assassinadas mais de 6 milhões de pessoas.
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Arendt conta que Eichmann não era muito inteligente, não completou os estudos secundários e só encontrou emprego como ambulante graças aos contatos da família.
Segundo a filósofa, ele se refugiava em “frases feitas, clichês e na linguagem oficial”.
Um dos psicólogos que o examinou afirmou que “sua única característica peculiar era ser mais ‘normal’ em seus hábitos e na linguagem do que a média das pessoas”.
Claro que há grandes diferenças entre Eichmann e Maduro.
Mas também semelhanças.
Maduro também não foi bem nos estudos e na vida profissional, e seus tropeços gramaticais continuam a divertir nas redes sociais.
As “frases feitas, os clichês e a linguagem oficial” impregnam seu vocabulário.
Sua banalidade é legendária.
O presidente da Venezuela acaba de publicar um artigo de opinião revelador no El País.
No artigo, documenta sua falsidade e deixa à vista sua imensa crueldade.
Inicia o artigo afirmando que: “A nossa democracia é distinta de todas. Porque todas as demais são democracias formadas por e para as elites”.
O fato é que a opulenta elite criada por Hugo Chávez e perpetuada por ele há duas décadas vem enriquecendo ilicitamente e exercendo o poder de maneira nada democrática.
Seu controle sobre todas as instâncias é absoluto.
Exemplo: entre 2004 e 2013 o Supremo Tribunal de Justiça proferiu 45.474 sentenças.
Nenhuma contrária ao governo.
E ele continua:
“A revolução mudou e se tornou feminista. E entre todos e todas decidimos remover a violência machista do nosso sistema de saúde e empoderar as mulheres por meio do programa nacional de parto humanizado”.
Segundo a prestigiada revista médica The Lancet, a taxa de mortalidade de mães na Venezuela nos últimos anos aumentou 65% e a infantil, 30%.
Também os jovens preocupam Maduro:
“Há 20 anos, antes da nossa revolução bolivariana, era normal culpar os jovens pela sua inação. (...) Mas conosco no governo as coisas mudaram”.
Nisso o presidente tem razão, a situação mudou; hoje o poder de compra do salário mínimo é 94,4% menor do que em 1998.
Na prática, o salário mínimo “na rua” é de pouco mais de US$ 3 por mês.
Um mês de salário mínimo “oficial” dá apenas para comprar 2 kg de frango.
E nem todos conseguem ganhar isso.
Uma enfermeira que trabalha por conta própria ganha o equivalente a US$ 0,06 por dia.
Mas há mais: os jovens que deixam o presidente tão preocupado são as vítimas mais frequentes do crime desenfreado que sacode o país.
Naturalmente a prioridade é o povo:
“É fundamental que a economia esteja a serviço do povo e não este a serviço da economia. A economia é o coração do nosso projeto revolucionário. Mas em meu coração a população está em primeiro lugar”.
Essas pessoas que povoam o coração do presidente são dizimadas pela maior hiperinflação latino-americana do século 21 e pela falta de alimentos, remédios e itens básicos.
Segundo o FMI, neste ano os preços subiram 13.000%.
No ano passado, 64% dos venezuelanos perderam, em média, 11 kg de peso por falta de comida.
Neste ano o desabastecimento é ainda pior.
O presidente ainda usa a coluna para reafirmar suas credenciais democráticas:
“Para nós só existe liberdade e democracia quando há outra pessoa que pensa diferente à frente, e também um espaço onde essa pessoa pode expressas sua identidade e suas diferenças”.
Para centenas de presos políticos, esse “espaço” é uma cela imunda onde eles vivem amontoados e alguns deles são regularmente torturados, como tem sido denunciado por organizações internacionais de direitos humanos.
Para aprofundar a democracia que reina em seu país, Maduro convocou eleições antecipadas e é um dos candidatos com mais possibilidade de vencer, embora seus eleitores estejam morrendo de fome:
“Temos nos empenhado com paixão em tornar transparentes, respeitar e fazer com que sejam respeitadas as leis para as eleições de 20 de maio”.
O pequeno detalhe que ele omite é que 15 governos da América Latina mais União Europeia, Estados Unidos e Canadá denunciaram como fraudulento o escrutínio e declararam que não reconhecerão seu resultado.
Maduro, o democrata, impediu os principais partidos de oposição de participarem da eleição; seus candidatos mais populares estão presos, exilados ou desqualificados.
Além disso, não permite que observadores internacionais independentes monitorem o processo eleitoral.
Mas a grande democracia russa mandará uma equipe de observadores.
Cuba e Nicarágua também.
É bastante revelador que Maduro não tenha dedicado uma linha ao inferno que os venezuelanos estão vivendo.
Nas pesquisas que avaliam a felicidade em diferentes países, a Venezuela costumava estar nos primeiros lugares.
Hoje é o 102º entre os 156 pesquisados.
E uma das peculiaridades mais revoltantes do regime é a indiferença criminosa face ao sofrimento dos venezuelanos.
A indolência, o desinteresse e a passividade com que Maduro trata as crises, matando diariamente cada vez mais venezuelanos, parecem não afetá-lo.
Pelo contrário, nega que a Venezuela esteja sofrendo uma crise humanitária e não permite a ajuda que já teria salvado milhares de vidas.
Sim, Maduro é banal. Mas também letal.
...
*É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMENT EM WASHINGTON