Não é pelos 46 centavos 01/06/2018
- ROGÉRIO ARANTES*
Em junho de 2013, quando o Movimento Passe Livre liderou marchas nas grandes cidades do país contra o aumento das tarifas de transporte público, mal sabia ele que seria seguido por uma miríade de grupos insatisfeitos com “tudo isso que está aí”.
A mobilização surpreendeu por seu volume e intensidade, abrindo ao país uma nova quadra histórica, em que ainda permanecemos, mas sobre a qual não temos diagnósticos muito claros.
Tal como se passou naquele ano, o atual movimento dos caminhoneiros desafia a compreensão dos analistas, e, embora seja possível apontar algumas de suas causas, é difícil prever seus desdobramentos.
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É notável que 2013 e 2018 tenham em comum a questão da mobilidade, mas ambos ultrapassaram essa dimensão e catalisaram o mal-estar de toda a sociedade.
Em 2013 os estudantes problematizaram não apenas os custos do transporte coletivo — que em sua visão deveria ser gratuito —, mas os diversos problemas que afetavam a circulação e a vida nas grandes cidades.
Quando, no início, foram chamados de vândalos e sofreram brutal repressão policial nas ruas, acenderam a insatisfação difusa da sociedade, que aderiu às manifestações em larga escala, obrigando governantes a rever o enquadramento inicial e a recuar no uso da violência contra os manifestantes.
“Não é só por 20 centavos” parecia um slogan promissor, capaz de envolver muitos setores dispersos, mas igualmente descontentes com o estado geral das coisas.
Entretanto, à medida que as avenidas foram se tornando estreitas para tanta indignação, a pressão social transbordou canteiros, abalou governos, pôs em xeque a legitimidade da classe política e descarrilou para uma crise de regime na qual a própria ideia de democracia foi colocada em dúvida.
Também hoje parece evidente que “não é só por 46 centavos” de redução no preço do diesel que o movimento dos caminhoneiros e seus apoiadores fechou estradas e praticamente paralisou o país.
Os movimentos de 2013 e 2018 foram deslocamentos sísmicos, cujo epicentro está no sistema político em decadência e na crise da representação política tradicional.
É fato que 2013 surpreendeu por apanhar uma presidente com razoáveis índices de aprovação (que caíram depois das manifestações, e não antes delas) e uma situação econômica bem mais organizada que a que temos hoje.
De lá para cá, o quadro se deteriorou dramaticamente e a crise do sistema político se fez mais evidente: passamos por uma eleição muito polarizada em 2014, cujo resultado não foi aceito pelos derrotados, que se empenharam por seu cancelamento; deflagrou-se a maior operação de combate à corrupção da história brasileira, que se propôs a lavar o país a jato, atingindo os principais partidos (uns mais, outros menos), grandes empreiteiras e diversas lideranças políticas, inclusive de campos opostos, mas ligadas nos mesmos dutos de financiamento; uma luta intestina da coalizão até então governista paralisou o país em 2015, impediu as reformas necessárias e só começou a ser estancada quando o script Jucá-Machado indicou o caminho do impeachment de Dilma, numa espécie de fuga para a frente dos desesperados em escapar de Curitiba; por fim, houve uma deterioração rápida, extensa e profunda do quadro econômico e social, atingindo conquistas históricas — do equilíbrio fiscal à situação de quase pleno emprego, das taxas modestas porém permanentes de crescimento à inédita e consistente inclusão social, da inflação sob controle às perspectivas de uma fonte imensurável de riqueza adormecida no pré-sal, tudo isso se esvaiu como no despertar de um sonho, como se jamais tivesse sido realidade.
E do sonho ao pesadelo passamos a um contexto de estagnação econômica, de perda da capacidade do Estado de conduzir políticas públicas e manter o equilíbrio fiscal, de explosão do desemprego, de reversão dos indicadores sociais, de quebra das expectativas em relação ao futuro, de aumento e generalização da violência, de funcionamento temerário das instituições e do maior nível de desprestígio da classe política sob o regime de 1988.
Este é o cenário mais amplo que hoje trava as faixas de rolamento da vida brasileira.
Quando a crise política se instalou e a remoção de Dilma foi posta como alternativa, muitos de nós, analistas políticos, alertamos que o remédio seria pior que a doença e que a solução poderia desencadear uma crise institucional e abalar as bases do próprio regime democrático.
Penso que acertamos nessa previsão. A democracia é um sistema de equilíbrio baseado na crença de que as regras serão respeitadas por todos e que, quando alguma força política atua à revelia dessas regras, o equilíbrio se desfaz e daí por diante é um salve-se quem puder.
O princípio fundamental da democracia é a alternância no poder entre partidos que se dispõem à competição política sob regras.
A derrota eleitoral de uns, a vitória de outros são indicadores da democracia porque representam efeitos concretos da competição política: indicam que um partido no governo não é capaz de impedir sua própria derrota, que o eleitorado é soberano no que diz respeito à escolha de quem vai governá-lo e que os jogadores estão submetidos a uma dinâmica capaz de impor limites a sua vontade de conquistar e permanecer no poder.
A manutenção das condições de competição é tarefa ou função, basicamente, do arranjo institucional da democracia, especialmente dos freios e contrapesos entre os Poderes, dos órgãos de controle e fiscalização e da mãe de todas as regras, a Constituição.
Juntas, e no dia a dia do regime democrático, essas instituições asseguram aos competidores que as condições da disputa política não serão alteradas entre uma eleição e outra.
Por isso a democracia é a expressão de um equilíbrio contingente, dependente do comportamento dos atores relevantes.
Desde que esse equilíbrio começou a se desfazer em 2014, temos dado passos regulares na direção da desinstitucionalização da própria democracia.
O script Jucá-Machado nos revelou que a verdadeira intenção dos opositores de Dilma, igualmente envolvidos em esquemas de corrupção, era fazer frente não ao partido vitorioso em 2014, mas ao inimigo maior representado pela Operação Lava Jato, que ameaçava a todos indistintamente.
Aécio Neves, que havia dito que perdera a eleição para uma “organização criminosa”, seria “o primeiro a ser comido”, nas palavras de Machado.
“Estancar a sangria” passaria pela destituição da presidente, pela posse de Michel Temer e daí por diante pela possibilidade de aprovar leis de anistia no Congresso e pela ingerência sobre os órgãos de Justiça e de investigação, senão um pacto com eles, “com Supremo, com tudo”.
Assim, o governo Temer, orquestrado na antessala de Dilma, sofre de um grave déficit de legitimidade desde sua origem.
Para superá-lo, ludibriou as forças de mercado em busca de apoio, mas, ao não entregar de fato as reformas prometidas, adernou às Forças Armadas nas quais se apoia hoje.
No famoso programa Uma Ponte para o Futuro, o MDB sinalizou que, uma vez no poder, realizaria as tais reformas orientadas para o mercado.
E as forças econômicas acreditaram que um partido que tem o gasto público em seu DNA seria capaz de promover o ajuste fiscal, vender a Casa da Moeda, mas também a Eletrobras, reformar a Previdência e assim por diante.
De todas as promessas feitas, o governo Temer entregou apenas a PEC do Teto, a reforma trabalhista e uma nova forma de gestão da Petrobras, cuja política de preços flutuantes dos combustíveis desencadeou o atual movimento de transportadoras e caminhoneiros.
A dupla estratégia de flertar com o mercado e manobrar recursos institucionais para escapar da Lava Jato fracassou diante das flechas disparadas pelo procurador-geral da República contra o peito do próprio presidente, com base nas delações premiadas, mas não menos temerárias, dos executivos da JBS.
Embora a Câmara dos Deputados tenha negado autorização para a instauração de processos contra o presidente, por duas vezes Temer e sua base aliada viram estreitar-se dramaticamente suas margens de atuação ao longo de 2017.
Foi para debelar uma ruidosa manifestação em Brasília, que pedia por sua renúncia depois da revelação das conversas com Joesley Batista, que o presidente lançou mão do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e acionou as Forças Armadas para a gestão de conflitos políticos.
Começava ali o fim do governo civil de Temer.
Com a aproximação das eleições de 2018, a lógica eleitoral se impôs à lógica das reformas: para seguirem em ritmo lento no andar superior da Lava Jato (o STF), longe da presteza e das projeções em Powerpoint de Curitiba, todos precisam conquistar votos para assegurar mandatos e com eles o foro privilegiado.
Reformas impopulares como a da Previdência cederam lugar à necessidade imposta pelo encontro marcado com as urnas.
Em 7 de abril, Dia do Fico e prazo máximo de desincompatibilização para concorrer nas eleições, metade do ministério (desconsideradas as pastas técnicas) bateu em retirada, a maioria envolta em denúncias da Lava Jato.
A ordem de prisão de Lula nesse mesmo dia deve ter reforçado a decisão dos forodependentes de buscar proteção para o período 2019-2022.
Temer restou ainda mais isolado e seu governo mais enfraquecido, cumprindo talvez mais uma das profecias de Jucá:
“Tem de ser um boi de piranha, pegar um cara, e a gente passar e resolver, chegar do outro lado da margem”.
Acossado por uma terceira denúncia do MPF envolvendo seus amigos do Porto — denúncia que o presidente considerou “mais pífia do que as duas anteriores” (sic), sem base de sustentação para levar adiante as reformas, Temer deslocou o foco para outras praias.
Ainda em fevereiro, num mesmo final de semana, abandonou a reforma da Previdência e promoveu a intervenção sob comando militar no Rio de Janeiro.
A terceirização de parte do governo aos militares envolveu a nomeação, pela primeira vez, de um general do Exército para o Ministério da Defesa, além da presença cada vez mais central nos assuntos de governo do Gabinete de Segurança Institucional, também chefiado por um militar da reserva.
Não há indicador mais sintomático dessa mudança de direção — da agenda de reformas para ações de segurança — do que o fato — sabia bem o presidente professor de Direito Constitucional — de que a Constituição não pode ser reformada em meio à vigência de decreto de intervenção federal.
Se durar, como previsto, até 31 de dezembro de 2018, será a primeira vez desde 1992 que passaremos um ano sem emendar a Constituição e, portanto, sem reformas.
Foi nesse contexto que caminhoneiros e transportadoras iniciaram seu movimento.
Diversas associações do setor já haviam alertado sobre o agravamento da situação, especialmente os aumentos frequentes de preço do diesel pela Petrobras.
A greve foi declarada na sexta-feira 18 de maio, e já no final de semana começaram os primeiros bloqueios de estradas.
Em poucos dias vários estados acusavam a paralisação de rodovias, os transportes de cargas passaram a sofrer interrupção, causando desabastecimento de diversos produtos, especialmente de combustíveis, e a ameaça de uma paralisação do país se tornou finalmente crível.
O governo bem que acenou com a redução de impostos sobre o diesel e outras medidas que acabariam por propiciar um primeiro acordo com representantes dos grevistas na quinta-feira 24 de maio.
Todavia, no dia seguinte pouca coisa mudou e o governo se deu conta de que desconhecia a natureza, a organização e a extensão do movimento.
Tal como em 2013, a reação governamental passou a desqualificar o movimento, atribuindo-lhe o caráter de locaute, isto é, de estar sendo conduzido por empresários do setor, e não por trabalhadores autênticos.
Temer disse publicamente que se tratava de uma “minoria radical” e, do alto de sua popularidade de 3%, buscou jogar a opinião pública contra os manifestantes, endurecendo o discurso de que não deixaria o país refém das ações e interesses deles.
De fato, a Advocacia-Geral da União ingressou com ação no STF e obteve de um de seus ministros aleatórios uma rápida e inédita autorização para uso da força contra os caminhoneiros e imposição de pesadas multas.
No mesmo dia o presidente editou outro decreto GLO, autorizando o uso das Forças Armadas no desbloqueio das estradas, e o ministro da Segurança Pública orientou a Polícia Federal a abrir inquéritos contra donos de transportadoras envolvidos na paralisação.
O endurecimento do governo federal não previa, como aconteceu também em 2013, que os caminhoneiros ganhassem a simpatia da sociedade, a despeito dos graves prejuízos causados pelo movimento.
Some-se a isso o fato de o governador de São Paulo ter aberto, também na sexta-feira, canal direto de negociação com os grevistas no estado e feito mais concessões do que o governo federal havia sinalizado, não sem se certificar da capacidade de liderança dos negociadores sentados a sua mesa.
Temendo que a estratégia repressiva pudesse produzir efeito contrário, no domingo foi a vez de Temer recuar e promover, daí num círculo mais amplo de representantes dos caminhoneiros, um segundo acordo em bases muito mais generosas para a categoria.
Embora não tenham desfeito a blindagem da Petrobras, de seu presidente e da nova matriz de gestão de preços, as concessões foram tantas que as “vozes do mercado” se levantaram contra as medidas, por seu provável impacto negativo nas contas públicas.
Na segunda-feira, mesmo após a assinatura do novo acordo, bloqueios foram mantidos, especialmente no Sul e Sudeste do país.
A hipótese de locaute cedeu lugar à de “intervencionistas” infiltrados, isto é, de apoiadores da “intervenção militar já” para a derrubada do governo.
De fato, o slogan aparecia escrito em vários caminhões parados ao longo das estradas e lideranças intervencionistas disseminavam sua propaganda nos grupos de WhatsApp dos caminhoneiros, angariando a partir daí milhões de seguidores.
É sinal dos tempos que a reivindicação dos intervencionistas tenha sido prontamente atendida pelo governo, que mandou as Forças Armadas ao encontro dos manifestantes.
No estudo das intervenções militares ao longo de nossa história, o brasilianista Alfred Stepan desenvolveu a teoria do padrão moderador, segundo a qual as Forças Armadas não agem unilateralmente, mas dependem do chamamento das elites civis para intervir e moderar o conflito político.
Padrão comum nos anos 1940-1960, esse tipo de participação dos militares na política era resultado da fragilidade de nossas instituições democráticas, mas também da incapacidade das Forças Armadas de assumir elas mesmas, e diretamente, a condução do governo.
Tanto foram chamadas e tanto aprenderam no papel de moderadores que em 1964 os militares decidiram ficar e não devolveram o poder aos civis.
Levamos 21 anos para convencê-los a voltar para o lugar de onde nunca deveriam ter saído.
Esse é o espectro que volta a rondar a democracia brasileira, e na boleia dos que dirigem o país ninguém parece ter a bússola capaz de assegurar o caminho certo para evitá-lo.
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*Doutor em Ciência Política e professor da Universidade de São Paulo