O mundo inteiro é um palco, como o mágico inglês das palavras nos ensinou 500 anos atrás. É também uma mesa de jogo, na qual, obrigatoriamente, umas a gente ganha, umas a gente perde – é uma lei que nunca vai mudar neste nosso Vale de Lágrimas.
É o acaso, caprichoso, distraído e arbitrário que decide uma imensa quantidade de questões, muito mais numerosas do que gostaríamos; em geral preferimos o conforto de acreditar que nossos sucessos são determinados por nossos méritos e que nossos fracassos se devem aos defeitos dos outros.
Mas no Brasil de hoje, quando se entra na disputa política, existe uma alarmante quantidade de pessoas, consideradas razoavelmente aptas ao exercício da atividade cerebral, cada vez mais convencidas de que foram agraciadas com o privilégio sobrenatural de ganhar todas.
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Não importa onde cravaram suas fichas no tapete verde da roleta: vizinhos do zero, terço do cilindro, órfãos, coluna a cavalo, sortes simples, transversais plenas ou seja lá o raio que for – acreditam que vão ganhar porque acreditam que têm razão.
Como poderiam perder, se estão certas?
Poucos fatos ilustram tão bem esse comportamento como a reação da maioria das classes intelectuais brasileiras, ou da chamada “esquerda” nacional, diante da morte de Fidel Castro.
Boa parte de seus militantes já cometeram suicídio mental há muito tempo; consideram que Fidel é um herói dos nossos tempos, e aí realmente não há nada que valha a pena comentar.
Outra parte, e é nisso que está a complicação, propõe uma impossibilidade: defender o personagem central de uma ditadura que já está aí há 57 anos, com base na força militar bruta, e, ao mesmo tempo, sustentar que são a favor da democracia.
Conseguem, apenas, deixar claro que abdicaram do trabalho de pensar.
O jornalista Reinaldo Azevedo resumiu com perfeição, neste espaço, o defeito terminal que impede a esquerda brasileira – e a mídia que vai em peso atrás dela ─ de funcionar como um ente racional ao se manifestar sobre a morte de Fidel: seus integrantes acham que ele deixou “um legado ambíguo”, ou controvertido, ou impossível de se definir em termos de “certo ou errado”.
Que diabo estão falando?
A visão mais direta dos fatos, diz Reinaldo, mostra que não há “ambiguidade” nenhuma, nem “controvérsia”, nem dúvidas de natureza lógica.
Fidel foi um dos inimigos mais agressivos da liberdade que a América Latina jamais conheceu.
Nenhum outro regime do continente se valeu tanto da repressão como a Cuba de 1959 para cá.
Fidel jamais permitiu eleições, liberdade de imprensa, partidos de oposição, sindicatos livres, direitos individuais ─ nada, simplesmente, que pudesse lembrar o funcionamento de uma democracia.
Qual é a dúvida, então?
O bem e o mal não poderiam estar mais claros.
Sobra, na defesa de Fidel feita pelos intelectuais brasileiros, uma conversa rasa, paupérrima, que em nada se assemelha a um conjunto de argumentos.
Segundo essa prosa, o mérito do personagem está em ter eliminado o “analfabetismo”, dado leite às crianças cubanas, reduzido as cáries dentárias e coisas dessa envergadura; nenhum menção jamais é feita aos países que fizeram tudo isso, e muitíssimo mais, sem sacrificar uma única liberdade pública ou privada.
Sim, Cuba vive há quase 60 anos numa ditadura – mas os dentes das pessoas estão uma beleza.
É a conclusão, pelo jeito, que conseguiram construir.
Chegou-se, até mesmo, a apontar a excelência dos festivais de cinema, literatura ou música que a “revolução” teria trazido para Cuba – algo realmente extraordinário, para um país que praticou durante décadas uma das censuras mais rigorosas do planeta.
Pessoas que receberam instrução, inclusive universitária, e repetem essas coisas, vivem num mundo morto.
Condenaram-se a acreditar que estão obrigatoriamente certas em tudo o que tem dentro das próprias cabeças.
Ficaram tão acostumados a achar que têm razão que não conseguem mais lidar com a razão – a ponto de sustentarem que é possível, perfeitamente, haver democracia sem liberdade.
Passaram a vida praticando esse vodu político; agora não têm mais energia para mudar.