Quando alguém se coloca no papel de Deus no dia do Juízo Final, disposto a dar sentenças sem possibilidade de recurso, é bom saber o está fazendo, porque o emprego de Deus não é assim tão fácil como se pensa.
Mas aí é que está: hoje em dia qualquer um se nomeia Padre Eterno, sem pensar durante meio minuto se está qualificado para a função.
Acredita seriamente que é capaz de tirar de letra a tarefa de separar céu de inferno, não se prepara para o serviço e o resultado acaba sendo uma lástima.
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É o que o público acaba de ver, nos últimos dias, no processo divino e penal instaurado por jornalistas de televisão contra os atuais candidatos a presidente da República.
Não estão previstas absolvições nesse tribunal.
As únicas sentenças disponíveis são as de condenação.
Nada do que os réus dizem, quando conseguem dizer alguma coisa, é levado em consideração; é uma surpresa, na verdade, quando recebem a permissão dos inquisidores para completar uma resposta.
O resultado final é que ninguém acredita que os moços e as moças da tela sejam mesmo um Deus legítimo.
Ficam com cara de Rolex paraguaio.
Não assustam mais os acusados.
Fazem o público ficar torcendo contra eles e a favor dos candidatos. Provocam o riso.
Ninguém parece estar fazendo isso tão bem quanto a Rede Globo, embora este seja um campeonato em aberto na mídia, com muito jogo ainda pela frente.
Seus entrevistadores vão para cada programa com um propósito acima de qualquer outro ─ em vez de fazer perguntas aos candidatos, fazem acusações.
Não é, em nenhum momento, uma entrevista: é um interrogatório policial, onde os inquisidores não ouvem as respostas do inquirido, não se obrigam a colocar um mínimo de inteligência nas suas questões e só se interessam em exibir para o público o quanto admiram as suas próprias virtudes.
Aumentam o tom de voz cada vez que o acusado abre a boca para falar alguma coisa.
Arregalam os olhos.
Ficam de dedo em riste.
Fazem caras e bocas.
Se enervam o tempo todo.
A última coisa que os preocupa é levar alguma informação a quem está assistindo ao programa.
Ao fim do espetáculo, a maior parte do público já esqueceu a maçaroca de números, nomes e datas, frequentemente desconexos, incompreensíveis ou tolos, que os acusadores jogaram em cima de todos.
Praticam, em suma, um jornalismo de emboscada de baixa qualidade, em que se satisfazem plenamente em ouvir o barulho dos tiros que disparam.
Acham que isso é o bastante para revelar sua independência diante dos candidatos.
Conseguem, no fim, mostrar apenas o quanto podem ser neurastênicos.
O resultado mais frequente disso tudo têm sido o exato contrário do que os programas pretendem.
Os jornalistas conseguem, sim, desfilar na tela no papel de mocinhos e deixar os candidatos na posição de bandidos ─ o problema, porém, é que acabam levando o público a torcer pelo bandido.
Como ser diferente?
À certa altura de um dos recentes inquéritos, por exemplo, os entrevistadores colocaram a si próprios na posição de sustentar perante a plateia que a dramática queda na taxa de homicídios de São Paulo nos últimos dez anos era uma obra do PCC.
Aí fica realmente difícil.
Da mesma maneira, perderam o controle da própria capacidade de pensar durante os confrontos com o seu monstro preferencial, o candidato Jair Bolsonaro.
É perigoso fazer isso em briga de rua.
Acabaram, por duas vezes seguidas, permitindo que o deputado dançasse um sapateado flamengo em cima de si próprios e da emissora que os emprega.
Não é um “problema deles”, como se poderia dizer.
Os episódios cada vez mais inquietantes de perversidade, fanatismo e grosseria por parte de tantos eleitores, um sinal particular da atual campanha para a Presidência, são consequência inevitável do extremismo que passou a comandar o ambiente político brasileiro.
As cruzadas da mídia fazem parte do problema.
Dezenas de milhões de cidadãos se sentem agredidos, há anos, por uma visão da sociedade, da política e da vida que afronta diretamente os seus valores e convicções.
Acabaram achando que a defesa do seu mundo depende das posturas mais extremadas que circulam na praça.
A besta-fera do radicalismo, que tanto assusta hoje, estava apenas hibernando.
Tiraram o bicho da toca e agora fica complicado se livrar dele.