O aparelhamento do Itamaraty 08/11/2018
- MIGUEL GUSTAVO DE PAIVA TORRES*
Na última semana de dezembro de 2002, época de festas natalinas e réveillon, coube a mim participar, em regime de plantão de fim de ano, ao lado de um colega embaixador, da recepção de uma equipe de transição do Partido dos Trabalhadores, que percorria a esplanada em busca de informações administrativas para a então iminente posse do novo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em primeiro de janeiro de 2003.
Para nossa surpresa, verificamos que o interesse principal da equipe de transição, que visitava naquele dia o Itamaraty, era tão somente um assunto específico: quantos DAS ( Direção e Assessoramento Superior) e DAI ( Direção e Assessoramento Intermediário), referentes a cargos de chefias e assessoramentos, estavam disponíveis para preenchimento em nosso Departamento específico e no Ministério em geral.
Cuidadosamente, explicamos aos nossos interlocutores que todos os cargos do Ministério das Relações Exteriores, por lei, eram restritos aos membros do Serviço Exterior Brasileiro, admitidos por concursos públicos e, no caso específico dos diplomatas, com formação no Instituto Rio Branco, também matéria legal.
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Foi evidente o desconforto da equipe visitante com a nossa resposta, mas prosseguiram tomando notas e com novas questões sobre o funcionamento da máquina administrativa do Ministério.
Com o desenrolar do novo governo, alterações paulatinas passaram a ocorrer na área administrativa do MRE, uma das mais estranhas foi a de transportes internacionais das mudanças dos funcionários do Serviço Exterior, rubrica com importante impacto financeiro no minguado orçamento da Casa.
A tradição administrativa, até então, era a de que cada funcionário deveria convidar três empresas de mudanças para realizar orçamento, e o mais barato venceria, salvo em caso de comprovada inidoneidade ou ineficiência da empresa convidada, que deveria constar obrigatoriamente de cadastramento no Ministério.
No exterior o processo era idêntico: o funcionário que estava em Tóquio, sendo removido para a Bolívia ou para o Brasil deveria convidar três empresas idôneas locais cadastradas no Consulado ou na Embaixada, para processo idêntico.
As empresas vencedoras, aquelas de menor preço, eram responsáveis pelo recolhimento e entrega da mudança no sistema porta a porta.
Deixou de ser assim.
O Itamaraty passou a ter uma lista especifica de empresas brasileiras escolhidas para gerenciar as mudanças por regiões do mundo, e as contratações das mudanças entre postos no exterior e entre os postos e Brasília, a serem feitas exclusivamente por essas empresas brasileiras autorizadas, sem a possibilidade de escolha e decisão dos funcionários e dos postos.
Assim, se você estava em Ulan Bator, na Mongólia, e precisava levar sua mudança para o Consulado em Santa Cruz de La Sierra, quem decidiria qual seria a empresa da Mongólia a adentrar sua residência e fazer a mudança passava a ser a empresa brasileira responsável por aquela região do mundo.
No mínimo estranho. Esdrúxulo.
Aos poucos, por motivos de serviço, foram sendo requisitados funcionários de outros ministérios e se deu início, também, a um processo de terceirização nas atividades meio, com justificativa de economicidade.
O Ministério homogêneo que garantiu excelência no serviço público por largo período da nossa história diplomática, passou a ter uma massa crescente e heterogênea de funcionários, circulando por salas e espaços depositários de documentos confidenciais e secretos.
Finalmente, para completar o quadro da suposta democratização administrativa do Ministério, seguiu-se um acelerado processo de promoções e remoções de funcionários do serviço exterior para postos chaves da diplomacia brasileira, e um afastamento progressivo de toda uma geração que dirigiu a política externa do Brasil até o início dessa nova fase administrativa.
Os que permaneceram na ativa foram relegados a consulados confortáveis, para não reclamarem, a postos exóticos e distantes ou ao ostracismo permanente.
Caso emblemático ocorreu em El Salvador, onde embaixador exemplar, de fina competência e trato, passou a receber pedidos-ordens da primeira dama do país, uma senhora brasileira militante do Partido dos Trabalhadores, casada com o então Presidente socialista salvadorenho.
Evidente que o digno representante brasileiro não aceitou essas interferências indevidas.
Por este motivo, de não aceitar, sofreu brava reprimenda do nosso então Ministro das Relações Exteriores, sucessor de Celso Amorim, por não tratar o caso com “sensibilidade política”.
O Embaixador foi retirado do Posto para ser enviado para Sri Lanka, onde certamente não necessitaria da sensibilidade política preconizada pelo chefe, entre aspas, da diplomacia brasileira.
Claro que o competente embaixador não aceitou a decisão manu militaris de ser enviado para onde não deveria ser.
E sobreviveu ao tsunami do aparelhamento ideológico da esplanada dos ministérios.