Um dia no Planalto 13/11/2018
- MIGUEL GUSTAVO DE PAIVA TORRES
Jamais imaginei ou sonhei que um dia iria trabalhar no Palácio do Planalto, na sala contígua à do Presidente da República.
Foi um simples telefonema que me surpreendeu depois do almoço, quando descansava, antes de regressar ao meu trabalho no Departamento das Américas do Itamaraty, assistindo entre cochilos a novela do vale a pena ver de novo, na Globo.
O meu ex-chefe na Embaixada em Abidjan e amigo paternal, Marcos Coimbra, me convidava para substituir o seu filho na Chefia de Gabinete da Secretaria Geral da Presidência da República, no recém iniciado governo de Fernando Collor de Melo, conterrâneo e jovem presidente da República, eleito em uma acirrada campanha eleitoral.
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Frio na barriga e cérebro paralisado pela perplexidade da situação e a imensidade da responsabilidade que o meu ex-chefe e amigo pretendia me confiar.
Não foi fácil, e mais difícil ainda foi a descoberta do Brasil real sobre o qual eu tinha um conhecimento muito limitado pela vivência conventual e protegida da carreira diplomática.
A Secretaria Geral havia encampado a antiga Casa Civil e por ela tramitavam todos os atos de governo e se fazia a interlocução com a sociedade civil.
Collor chegava cedo e saia tarde.
Chegávamos por volta das seis e meia da manhã, antes do Presidente, e saíamos por volta de onze da noite, depois que havíamos entregue todas as medidas provisórias e demais atos para publicação no Diário Oficial da União, que rodava na madrugada.
Collor, mesmo tarde da noite em casa, eventualmente tinha que ser contatado telefonicamente por Coimbra, para eventuais esclarecimentos e orientações.
O problema é que a máquina não era, nunca foi e não é confiável.
Quase todos os ministérios tentavam enfiar jabuticabas suspeitas nas medidas provisória e atos oficiais para assinatura presidencial.
Collor me surpreendia pela enorme capacidade de trabalho, determinação, experiência política e capacidade arguta de detectar e suprimir pessoalmente essas malignas jabuticabas da máquina de moer o país que saia das espertezas burocráticas.
Todos, absolutamente todos os atos, eram revisados por ele e os trechos a serem refeitos ou retirados marcados do próprio punho, com caneta vermelha.
Uma luta diária, inglória, contra o seu próprio time de governo.
Ali, naquela papelada oficial diária ficava claríssimo que cada um queria defender os seus interesses, e o bolso, se possível.
Um dos fatos marcantes e exemplares do patrimonialismo histórico do Brasil foi a decisão do Presidente de editar medida provisória liberando a importação de trigo no Brasil para todos os interessados.
Desde a época de Vargas, a importação de trigo no país era uma concessão familiar, o que simplesmente afrontava todo o projeto renovador de abertura comercial, que era a marca principal do novo governo.
O problema é que a família concessionária tinha prestado forte apoio à campanha presidencial.
Este fato não impediu a edição da medida que sepultava o cartório do trigo.
E também não impediu o escândalo feito pelos abatidos na sala do meu chefe, Embaixador Marcos Coimbra, ao lado da sala de Collor.
Nada fez o Presidente recuar.
A abertura continuou, e a guerra para a derrubada do governo começava a ser planejada nas tocas cartoriais dos interesses empresariais e políticos espalhados pela imensidão do velho Brasil.
...
*Diplomata, foi chefe de gabinete da Secretaria Geral da Presidência da República em 1990-91.