No caso do indulto de Temer, STF se autojulga 29/11/2018
- BLOG DE JOSIAS DE SOUZA - UOL
No julgamento sobre o caso do indulto, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal não decidirão apenas se Michel Temer pode ou não livrar corruptos da cadeia por decreto.
Os magistrados estão prestes a proferir um veredicto sobre a própria Suprema Corte brasileira.
Retomarão nesta quinta-feira a análise iniciada na véspera. O risco de autocondenação lateja no plenário.
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Relator da encrenca, Luís Roberto Barroso esboçou o pano de fundo contra o qual o Supremo julga a si mesmo.
O ministro exibiu em seu voto uma “fotografia do momento atual”.
Começou por arrancar o manto diáfano que recobre a face do autor do decreto que perdoou 80% das penas dos larápios, livrando-os até do pagamento de multas.
“O presidente da República foi denunciado duas vezes, por corrupção passiva e obstrução de justiça, e é investigado em dois outros inquéritos por corrupção e lavagem de dinheiro”, recordou Barroso, ele próprio responsável pelo caso dos postos, um dos inquéritos que correm contra Michel Temer no Supremo.
O ministro prosseguiu: “Um ex-presidente da República foi condenado por corrupção passiva; dois ex-chefes da Casa Civil foram condenados criminalmente, um por corrupção ativa e outro por corrupção passiva; o ex-ministro da Secretaria de Governo da Presidência da República está preso, tendo sido encontrados em apartamento supostamente seu R$ 51 milhões.”
Do Executivo federal, Barroso saltou para o Legislativo e os governos estaduais:
“Dois ex-presidentes da Câmara dos Deputados foram presos, um deles já condenado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas; um presidente anterior da Câmara dos Deputados foi condenado por peculato e cumpriu pena; mais de um ex-governador de Estado se encontra preso sob acusações de corrupção passiva e outros crimes; um senador, ex-candidato a presidente da República, foi denunciado por corrupção passiva.”
Exposta a fotografia dos “esquemas profissionais” que assaltam o Estado, Barroso empilhou sobre a bancada as quatro interrogações que intimam os magistrados a esboçar uma reação. Nem que seja uma cara de nojo.
“Depois de tudo isso, para provar que o crime compensa, o Executivo concede indulto a essa gente e o Supremo chancela? Que mensagem vamos passar? Que país estamos criando? De que lado da história queremos estar?”
Primeiro a votar depois do relator, Alexandre de Moraes confirmou todos os receios de que um pedaço do Supremo está, sim, decidido a:
1) chancelar o indulto decretado por Temer,
2) passar uma mensagem pró-impunidade;
3) construir um país de descrentes; e
4) posicionar a Suprema Corte do lado avesso da história.
Guindado ao Supremo por indicação de Temer, Moraes sustentou que o decreto de indulto “é um ato discricionário do presidente da República."
Ele reforçou: "…É um ato privativo do presidente da República, podemos gostar ou não gostar."
O ministro tem toda razão. Mas o que está em questão não é o poder privativo de Temer, mas a forma como o presidente multi-encrencado exerce esse poder.
Coordenador da força-tarefa da Lava Jato, o procurador Deltan Dallagnol foi ao ponto:
“Poder de indultar é discricionário, sim. Contudo, não é ilimitado. Presidente se submete à Constituição Federal. O decreto de Temer é um evidente abuso do poder de indultar. Esvazia o poder do Congresso, viola a individualização da pena e deixa a sociedade desprotegida contra a corrupção.”
Alexandre de Moraes afirmou que o Supremo não tem poderes para reescrever o decreto de Temer, alterando os parâmetros do documento.
“Se nós fixarmos requisitos para esse decreto, estaremos fixando requisitos para todos os decretos subsequentes. Estaremos legislando.”
Ora, a prevalecer esse entendimento, Temer viraria um super-presidente, com poderes insindicáveis.
Barroso esclareceu em seu voto que não se trata de sobrepor a vontade do juiz às prerrogativas do presidente da República.
O que deve prevalecer é a Constituição. O ministro expôs o absurdo da cena ao iluminar o óbvio. No indulto natalino de 2017, sob julgamento, Temer impôs como pré-condição para a clemência o cumprimento de apenas 20% da pena.
Barroso declarou: “…Basta indagar-se se ele poderia reduzir o cumprimento das penas, não para 20% como pretendeu fazer aqui, mas para 10%, 5% ou 1%. Ou, quem sabe, abolir por decreto a pena de prisão no país. A resposta é desenganadamente não.”
Levada ao pé da letra, a tese de Alexandre de Moraes sobre a impossibilidade de sindicar o decreto de Temer transformaria também o Legislativo numa instituição onipotente.
Assim como o chefe do Executivo tem o poder discricionário de conceder indulto, os congressistas dispõem da prerrogativa exclusiva de legislar. Porém…
Se o Congresso produzir leis absurdas, estará sujeito a arrostar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade — a mesma ferramenta jurídica utilizada pela procuradora-geral da República Raquel Dodge para questionar o decreto de indulto baixado por Temer.
Ao Supremo cabe defender o texto constitucional, que fixa as balizas para a ação dos agentes públicos.
O julgamento prosseguirá. Virão à luz mais nove votos. Pelo menos três ministros — Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski — sinalizaram em apartes a intenção de seguir a linha do voto divergente de Alexandre de Moraes.
Ouvia-se um barulho ao fundo. Era o som dos fogos disparados no Planalto.
Um auxiliar de Temer estimou que o presidente prevalecerá no plenário do Supremo por um placar de pelo menos 6 a 5. Sonha com um 7 a 4.
O cheiro de enxofre foi sentido em Curitiba:
"A Lava Jato está em vias de sofrer a maior derrota de sua história", lamentou o procurador Deltan Dallagnol no Twitter.
"E o presidente Temer ficará livre para indultar quem ele quiser neste ano."
Confirmando-se o placar pró-corruptos, Temer de fato estará liberado para editar no Natal de 2018 um novo decreto de indulto tão ou mais benevolente que o do ano passado.
A força-tarefa de Curitiba estima que a decisão premiaria com o perdão das penas e das multas pelo menos 21 condenados da Lava Jato. Um acinte.
Há no ar uma fome convulsiva de limpeza. O brasileiro cordial foi extinto nas célebres jornadas de 2013.
A passividade desapareceu junto com a ideia de que o Brasil está à beira do abismo. O país já caiu no abismo faz tempo.
O mandato-tampão de Michel Temer é a vivência do abismo.
Por sorte, um país não se perde por cair no abismo. Uma nação se acaba por permanecer lá. E o que distingue o momento atual é a união ativa de forças que não estão dispostas a viver no abismo.
“Nos últimos tempos, houve uma expressiva reação da sociedade brasileira, que deixou de aceitar o inaceitável”, constatou o ministro Barroso em seu voto.
"Onde se vai no Brasil hoje se vê uma imensa demanda por integridade, por idealismo e por patriotismo. E essa é a energia que muda paradigmas e empurra a história. A reação da sociedade impulsionou mudanças importantes de atitude que alcançaram as instituições, a legislação e a jurisprudência.”
A tentativa de Michel Temer de premiar corruptos é parte de uma ofensiva daquilo que Barroso chama de “pacto oligárquico”.
Nas palavras do ministro, o Brasil não é atrasado por acaso.
“Somos atrasados porque o atraso é bem defendido.”
Alexandre de Moraes declarou a certa altura:
“Aqui não se discute o combate ou não à corrupção. Eu entendo que independentemente do voto de casa um dos ministros, todos queiram combater a corrupção."
Com essas palavras, o indicado o ministro divergente como que tentou afastar de sua calva uma carapuça que o colega lançara sobre o plenário minutos antes, sem citar nomes.
“O indulto dá incentivos errados para as pessoas erradas e cria o cenário para sermos o paraíso de corruptores, corruptos, peculatários, prevaricadores, fraudadores de licitações’, dissera Barroso." (…)
Claro que ninguém diz que é a favor da corrupção. Todo mundo é contra. Mas, em seguida, encontra um fundamento formal para liberar a farra.”
Noutro trecho do seu voto, Barroso soara ainda mais cáustico.
"(…) Também aqui há risco do mesmo discurso. ‘Claro, eu sou contra a corrupção. Mas não posso impedir o presidente da República de exercer suas competências’. O mal geralmente vem travestido de bem. Mas quem tem olhos de ver e coração de sentir, sabe quem é quem. E cada um escolhe o lado da história em que deseja estar. Só não dá para querer estar dos dois lados ao mesmo tempo: dizer que é contra a corrupção e ficar do lado dos corruptos.”
A esse ponto chegou o Supremo Tribunal Federal.
Num instante em que o brasileiro se esforça para sair do abismo, um pedaço da Corte máxima do Judiciário brasileiro revela-se disposta a jogar terra em cima.
Alguns magistrados ainda não se deram conta. Mas estão enterrando a própria noção de supremacia.
Muito mais do que a constitucionalidade do decreto de Temer, o Supremo decide no caso do indulto que tribunal deseja ser.