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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Uma charada em construção
15/01/2019 - J.R. GUZZO - VEJA

As coisas seriam relativamente simples no Brasil se todas as preocupações, dúvidas e problemas a resolver se resumissem ao novo governo do presidente Jair Bolsonaro.

Mas aí é que está: a vida nem sempre nos dá a oportunidade de lidar só com uma questão de cada vez.

Além de tudo o que precisa dar certo aqui dentro, hoje em dia é necessário encarar, também, uma quantidade ainda maior de coisas que têm de dar certo lá fora — e essas coisas, positivamente, não parecem estar a caminho de acabar bem.


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Trata-se das exigências do “novo pensamento mundial”, ou do “globalismo”, ou alguma outra combinação de palavras parecida — uma espécie de consenso ainda frouxo, mas cada vez mais ativo, que vai se criando nas elites europeia e americana sobre como o planeta deveria ser ordenado daqui para a frente.

A nova ordem que prescrevem para o mundo vai mal, e nem daria mesmo para esperar que fosse bem, levando-se em conta que inclui praticamente tudo o que deveria estar indo melhor com a humanidade.

Mas a complicação realmente não parece estar na quantidade de problemas existentes.

Parece, isso sim, estar na qualidade geral das soluções com as quais se pretende tornar o mundo e o homem melhores do que são hoje.

É uma sinuca, no caso particular do Brasil deste momento.

O governo Bolsonaro, definitivamente, se declara disposto a fazer o contrário do que o pensamento mundial recomenda para resolver os problemas do universo.

Do outro lado, o consenso ora em formação entre os intelectuais, burocratas, governantes e outros “influenciadores” da vida diária do Primeiro Mundo demonstra um aberto horror a tudo o que o governo brasileiro imagina que vai fazer nos próximos quatro anos.

De Bolsonaro já sabemos o que é preciso saber.

Do outro lado, porém, o que existe é uma charada em construção.

Quando você começa a achar que entendeu alguma coisa na lista de deveres a ser obedecida hoje por pessoas e nações, os deveres mudam, ou entram em choque entre si, ou exigem ações que você não sabe como executar, ou nem sequer imagina como podem ser executadas.

É mais ou menos natural, porque os propositores do novo pensamento não sabem direito, eles próprios, o que querem.

Nem todos querem as mesmas coisas.

Em sua maioria, eles não calculam direito as consequências das propostas que fazem.

Acre­ditam-se capazes de organizar fatos que estão acima e além do seu controle.

Não seguem, no fundo, uma ideologia, mesmo porque ainda não se identificou nenhuma ideia de verdade em nada do que prescrevem para o bem geral.

Há apenas uma tumultuada coleção de desejos — e a exigência de que sejam removidas do mundo, em geral por atos do governo, todas as situações de frustração, carência e ressentimento que hoje incomodam as consciências.

Não é fácil enxergar com clareza no meio desse nevoeiro.

Dá para dizer, em todo caso, que o grande traço de união entre as diversas seitas do novo pensamento é a certeza de que a mãe de todos os pecados do mundo de hoje é a falta de igualdade — tanto entre as pessoas, individualmente, quanto entre as nações.

Tudo o que há de errado na vida atual se deve, de uma forma ou de outra, à desigualdade; por via de consequência, de acordo com as crenças básicas do consenso mundial que está se formando no mundo rico, a redução ou a eliminação das diferenças levará à solução de todos os problemas que estão aí e não sabemos como resolver — dos quebra-quebras em Paris ao derretimento das geleiras no sul da Patagônia.

Quase tudo pode entrar na lista.

Guerras tribais na África, massacres de civis na Síria ou a fome no Congo não têm, por exemplo, nenhuma relação com as forças e os governos que provocam essas desgraças.

São, pelo novo sistema de pensar o universo, resultado da desigualdade e, portanto, têm de ser curados com mais igualdade.

Imigração ilegal em massa para os países bem-sucedidos?

Escassez de água?

Emissões de carbono?

É tudo mais ou menos a mesma coisa.

Se o mundo fosse mais igual, nada disso existiria.

Como muito pouca gente está disposta a argumentar em favor da desigualdade, basicamente lembrando que esforços desiguais devem resultar em recompensas diferentes, nada mais fácil hoje em dia do que encontrar combatentes da igualdade.

Estão por toda parte.

Em geral, acham que a redução do número de pobres se fará através da redução do número de ricos, e nunca da criação de riqueza entre os pobres.

Têm uma mal definida hostilidade ao progresso, visto que o progresso não conseguiu eliminar a desigualdade; acham que mais eletricidade ou mais estradas, por exemplo, trazem benefícios desiguais, e portanto são desaconselháveis, sobretudo quando você já tem as duas.

O novo pensamento não gosta da ciência — não admite mais pesquisas e investigações sobre fenômenos considerados fatos já definitivos pelas suas crenças, como o aquecimento global ou a destruição das florestas brasileiras.

Não gosta de religião, a não ser do islamismo, que deve ter estímulo, inclusive oficial, para se propagar nos países cristãos do Primeiro Mundo e aumentar com isso os índices de igualdade religiosa.

Não gosta de hábitos nacionais; a grande virtude de hoje é a “diversidade cultural”, que torna um país tanto mais correto quanto mais ele substituir sua cultura pela cultura de outros países.

Não gosta das liberdades individuais.

Naturalmente, há um declarado horror pelo “agronegócio”, que, segundo a sabedoria predominante, destrói a natureza, produz carne de boi e faz muita gente ganhar dinheiro.

O New York Times e outros centros da nova inteligência mundial estão convencidos, por exemplo, de que praticamente toda a produção da agricultura brasileira poderia ser substituída no futuro, e com vantagens, pelo consumo de insetos, capazes de fornecer todos os nutrientes necessários ao organismo humano.

Com isso, seria possível eliminar fazendas nocivas ao meio ambiente, que hoje desperdiçam com a produção de alimentos terras que deveriam estar destinadas às florestas.

Além disso, elas utilizam “agrotóxicos” e, eventualmente, perturbam a vida indígena.

É mais ou menos a mesma visão que atribui aos “direitos dos animais” importância equivalente à dos direitos humanos — isso para não falar nos direitos dos vegetais e da camada de gelo do Polo Norte.

De modo geral, consideram a sobrevivência do meio ambiente mais importante que a sobrevivência das pessoas de carne e osso.

Numa espécie de cava­lo de pau filosófico, acham normal que os recursos naturais não devam ser utilizados em favor do bem-estar humano; ao contrário, estão convencidos de que é obrigação do homem e dos governos não tocar em nada que esteja presente na natureza.

Nada disso parece ter alguma coisa diretamente relacionada com a redução das desigualdades — mas o fato é que todas essas crenças, de um modo ou de outro, são apresentadas como parte do mesmo pacote de salvação do mundo que vai sendo embrulhado hoje em dia por funcionários de burocracias como a ONU, a Comissão Europeia e outros organismos internacionais, governos de países ricos, universidades do Primeiro Mundo, a mídia em geral, o cantor Bono, e por aí afora.

Como de costume, as dificuldades mais complicadas que a construção da igualdade enfrenta estão nas suas incompatibilidades com o mundo real.

Desde o início, o movimento parece cada vez mais tentado a aceitar a ideia de que é possível obter o bem-estar independentemente do trabalho.

Há bem-­estar na Alemanha, por exemplo, e miséria na África?

A solução é abrir a Alemanha à imigração dos africanos — país onde se espera que passem a desfrutar a mesma prosperidade sem ter feito os últimos 100 anos de trabalho que os alemães fizeram para chegar aonde estão hoje.

É essa, por sinal, a grande ideia que sustentou a aprovação de recente acordo internacional que declara que todos os habitantes do planeta têm agora o direito legal de emigrar para o país que quiserem.

Pouca ou nenhuma atenção é dedicada nisso tudo à criação de mecanismos de produção capazes de gerar as riquezas a ser distribuídas para eliminar a desigualdade.

Distribuir a fortuna dos ricos parece ser uma ótima ideia até você ver que só dá para fazer essa distribuição uma vez — depois que é consumida, a riqueza acaba, e é preciso criar outra em seu lugar, para continuar havendo alguma coisa a distribuir.

Não está claro quem vai ficar encarregado dessa tarefa.

Outro problema é a tecnologia — quanto mais progresso se cria, mais se ­aumenta a desigualdade, e, a menos que se declare uma moratória no avanço tecnológico, o futuro promete a multiplicação acelerada de desiguais.

Hoje as revoluções industriais se sucedem mais depressa que as fases da Lava-Jato; na verdade, ninguém sabe direito em qual revolução, exatamente, estamos hoje.

Quarta?

Quinta?

O certo é que a cada avanço mais gente se vê excluída dos benefícios do progresso; nem todos têm capacidade para ocupar um emprego no Vale do Silício ou seus equivalentes através do mundo.

Os que não têm cacife para isso se veem, cada vez mais, relegados às ocupações menos atraentes, mais frustrantes, mais mal remuneradas.

Profissões inteiras vão se tornando obsoletas, em razão dos avanços da inteligência artificial, da impressão em terceira dimensão, da robotização e de outras mudanças desagregadoras do mundo profissional como ele é hoje.

Para que pilotos de jato se os aviões voarão sozinhos, e com muito maior segurança, de Nova York a Tóquio?

Para que médicos se o computador vai fazer um transplante de coração melhor do que eles?

Para que marceneiros se a impressão em 3D lhe entrega sua cadeira pronta e sem nenhum defeito?

É um mundo no qual só as pessoas com alto grau de conhecimento serão realmente cidadãos de primeira classe.

Por mais que as leis digam que todos são iguais, e por mais que as elites pensantes escrevam programas estabelecendo regras de igualdade, as diferenças estarão cada vez mais evidentes.

É para essas realidades que o Brasil tem de se preparar.

Será preciso, nessa caminhada, contar com ideias muito melhores do que as que apareceram até agora.

  

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