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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Debate rasteiro
01/03/2019 - J.R. GUZZO - EXAME

O Brasil dos nossos dias realmente elevou ao estado de arte, como se diz, a capacidade que as classes superiores desenvolveram nesses últimos tempos para transformar questões de desimportância ilimitada em motivo para discussões de altíssima tensão, nas quais se debate, desesperadamente, o destino final de tudo o que pode existir de essencial na existência humana.

A mulher do empresário Nizan Guanaes, por exemplo, cometeu ou não crime de racismo ao utilizar os serviços profissionais de negras vestidas com o traje clássico de baianas, em sua recente festa de aniversário em Salvador?

Quais os segredos de vida e morte que o ex-ministro Gustavo Bebianno, do qual nenhum cidadão comum jamais tinha ouvido falar até hoje, vai enfim “contar para todo mundo” ─ e provocar com isso a autodestruição imediata do governo?


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O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, já está marcando reuniões secretas com a CUT, a Conferência Nacional dos Bispos e o ex-presidente Fernando Henrique para acertar os detalhes finais do golpe de Estado que vai derrubar, a qualquer horinha dessas, o presidente Jair Bolsonaro?

Viram o que saiu publicado na coluna do colunista A?

E o que saiu publicado na coluna do colunista Z?

Com a crise cada vez mais grave, quantos meses ainda pode durar este governo?

E por aí se vai.

Nenhum desses portentos tem a mais remota possibilidade de resultar em qualquer tipo de coisa relevante, é claro, mas cada um deles faz um barulho danado até evaporar do noticiário, para dar lugar a outros vendavais da mesma qualidade.

Aguarde a qualquer momento, portanto, mais uma crise fatal em Brasília ─ ou melhor, mais um “desdobramento” da crise que se instalou no governo desde o dia 1º de janeiro deste ano e até agora não foi embora.

Já ouvimos, entre outras desgraças garantidas, que o presidente jamais conseguiria montar o seu ministério sem entregar a alma e o erário aos “políticos”.

Anular o convite para o ditador da Venezuela vir à cerimônia de posse de Bolsonaro foi uma atitude “de altíssimo risco” do novo governo ─ o Brasil, com essa decisão tresloucada, estava se isolando do resto do mundo.

Renan Calheiros iria ser eleito para a presidência do Senado e, a partir dali, formaria um vigoroso polo de “poder alternativo” ao governo; a “Resistência” encontraria nele o seu novo comandante.

Outros terremotos, além desses?

É só escolher no Google.

Fica a impressão, no meio de toda essa calamidade permanente, que a vida política brasileira está tentando, em pleno século XXI, operar num sistema de moto-contínuo ─ os fatos, aí, se criariam através da reutilização infinita da energia gerada pelo movimento desses próprios fatos.

É a fantasia da máquina que funciona sozinha.

O moto-contínuo, como se ensinava na escola, é um fenômeno cientificamente impossível, por violar as leis da termodinâmica.

Mas isso aqui é o Brasil, e no Brasil todo mundo sabe que há uma porção de leis que não pegam ─ talvez seja o caso, justamente, da “crise política” que é apresentada todos os dias ao público.

Um acontecimento ganha vida, prospera, desaparece e se reproduz num outro, o tempo todo; o mesmo processo se repete com esse outro acontecimento, e assim a coisa não para nunca.

Não tem a menor importância a força real dos fatos apresentados à população, nem a constatação de que nunca resultam em nada de prático; eles existem porque são anunciados, e pronto.

A próxima catástrofe é a reforma da previdência que o governo acaba de apresentar à Câmara dos Deputados.

Tanto faz o que vai realmente acontecer.

Mesmo que as mudanças sejam aprovadas, você ouvirá que o governo sofreu mais uma derrota ─ ou porque tal ou qual item não passou, ou porque “o custo foi alto demais”, ou porque o ministro Zé falou uma coisa e o ministro Mané falou outra, e assim por diante.

As verdadeiras questões que têm de ser resolvidas, enquanto isso, ficam voando no espaço sideral, inalcançáveis por um debate neurastênico, rasteiro e sem lógica.

  

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