Escravos, doentes e linchamentos 30/05/2019
- PEDRO VALLS FEU ROSA*
No já distante ano de 1618 um holandês de nome Dierick Ruiters deu um marcante testemunho acerca do que foram os anos de escravidão no Brasil:
“Vi, certa feita, um negro faminto que, para encher a barriga, furtara dois pães de açúcar. Seu senhor, ao saber do ocorrido, mandou amarrá-lo de bruços a uma tábua e, em seguida, ordenou que um negro o surrasse com um chicote de couro.
Seu corpo ficou, da cabeça aos pés, uma chaga aberta, e os lugares poupados pelo chicote foram lacerados a faca.
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Terminado o castigo, um outro negro derramou sobre suas feridas um pote contendo vinagre e sal. O infeliz, sempre amarrado, contorcia-se de dor.
Tive, por mais que me chocasse, de presenciar a transformação de um homem em carne de boi salgada e, como se isso não bastasse, de ver derramarem sobre suas feridas piche derretido.
O negro gritava de tocar o coração. Deixaram-no toda uma noite, de joelhos, preso pelo pescoço a um bloco, como um mísero animal, sem cuidarem de suas feridas”.
Exatos 250 anos depois, Joaquim Nabuco alertava sobre o vírus da violência, da falta de piedade e de compaixão que os anos de escravidão inocularam na sociedade brasileira.
A escravidão, escreveu ele, “vivendo com a sociedade intimamente, adaptou-se a ela, comunicou-lhe os seus vícios, carregou de sombras o seu futuro”.
Já nos nossos dias, o escritor Jean Marcel Carvalho França bem analisou o custo desta “herança de insensibilidade” que recebemos:
“Nunca é demais lembrar que o flagelo do cativeiro de negros durou mais de três séculos entre nós e foi, queiramos ou não, constitutivo daquilo que entendemos por sociedade e povo brasileiros.
É difícil crer que, alicerçada em tais bases, esta mesma sociedade, tradicionalmente muito lenta em corrigir distorções e reticente em discutir e alterar padrões, pudesse ou possa produzir um povo pacífico, um povo de bom coração, como se costuma dizer”.
Estas palavras induzem – ou pelo menos deveriam induzir – uma profunda reflexão sobre algumas cenas que vemos em nosso dia-a-dia, as quais, apesar de chocantes ao extremo, têm sido tratadas com uma insensibilidade surpreendente.
Inicio pelas cenas de doentes depositados no chão de corredores imundos de alguns hospitais públicos, gemendo e suspirando pela oportunidade de simplesmente ocuparem uma maca.
Não, não se diga faltarem recursos: um Brasil que gasta tanto com tantos supérfluos tem, sim, recursos para dar um leito de hospital aos seus filhos.
Somos mesmo um povo solidário? O que dirão nossos descendentes ao saberem que, em diversos hospitais particulares, muitas vezes seres humanos gemendo de dor são recebidos nos Prontos-Socorros com a pergunta “você trouxe a carteirinha?”, e apenas atendidos após estar garantido o pagamento das despesas?
Dia desses divulgou-se uma chocante pesquisa segundo a qual ocorrem no Brasil quatro linchamentos por semana. Constatou-se ainda que, dentre 20 mil linchamentos pesquisados, apenas uma pessoa foi punida. O autor da pesquisa, estimando que 50% da população suporte, ainda que não claramente, esta prática, concluiu que “já não somos um povo cordial”.
Em nossos morros e favelas diariamente morrem 20 crianças por falta de esgoto sanitário – apenas 25% dos brasileiros que residem em cidades são atendidos por rede de esgoto, e só 12% dos dejetos são tratados. Uma vez mais, não se fale em “falta de recursos” – um país riquíssimo como o nosso, que só em propaganda oficial gasta mais de R$ 1 bilhão a cada ano, poderia sim salvar as vidas destas crianças.
Talvez, neste início de milênio, mereça mesmo alguma reflexão a responsabilidade que temos de deixar para as futuras gerações de brasileiros a mensagem de que sentimentos como solidariedade e compaixão são nobres e devem ser cultivados.
É, talvez seja o momento de nos perguntarmos se estão abalados os sentimentos de fraternidade e religiosidade que nos ensinaram serem tão típicos da nossa gente.
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*Desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.