A Filosofia, que em breve existirá apenas nos livros de História — se ainda existirem livros de História —, trabalha com uma ferramenta que faz cócegas no cérebro: as experiências de pensamento.
Metáforas, fábulas e transposições de situações que simplificam questões morais complexas e nos colocam diante de dilemas que, em maior ou menor escala, enfrentamos no cotidiano.
Um desses exercícios é o consagrado “Dilema do Trem”.
PUBLICIDADE
Você está ao lado de uma estrada de ferro e vê um trem se aproximando. Mais adiante, você nota que cinco pessoas serão atropeladas, pois estão amarradas aos trilhos.
Você pode evitar a tragédia, pois na sua frente há uma alavanca que ativa um desvio. Se você mover a alavanca, o trem vai mudar de direção. O problema é que no desvio há uma única pessoa amarrada aos trilhos.
O que você faria? Você mudaria a direção do trem? Ou deixaria que o trem seguisse e atropelasse as cinco pessoas, eximindo-se de qualquer responsabilidade?
Trata-se de um exercício primário de Filosofia, desses que Olavo de Carvalho deve ter estudado ainda no primeiro ano da faculdade, ou melhor, nos primeiros livros que leu sobre o assunto.
Muita gente assume, numa primeira análise, que o correto é desviar o trem, considerando que trocar cinco vidas por uma parece justo.
Mas você estaria disposto a assumir essa responsabilidade?
Justo você, que só estava assistindo ao trem passar.
Seria como, sei lá, um deputado do baixo clero se dispor a assumir a responsabilidade de mudar o rumo da história.
É fácil a analogia entre o Brasil de hoje e o trem deste exercício.
Fomos convencidos de que estávamos a ponto de bater de frente com um suposto neo-socialismo-comunisto-petismo-eterno, mas poderíamos evitá-lo desviando para o conservadorismo e o pensamento retrógrado, que se sustentam em valores religiosos e da família tradicional.
O eleitor optou por chamar para si a responsabilidade e ativou a alavanca com raiva quase suicida.
Desviamos a rota que nos levaria à Venezuela e fomos contemplados com o bolsonaro-olavismo-militarismo.
Tudo certo, não fosse nosso novo ethos estar bem além desta fácil metáfora ferroviária.
Ao contrário das equações matemáticas, os experimentos de filosofia não possuem necessariamente uma resposta correta.
Eles existem para provocar a discussão e, invariavelmente, as tornam intermináveis até alguém não der um basta.
A gradual oxidação dos partidos políticos tradicionais, caracterizada pela absoluta incompetência do centro e da esquerda em apresentar candidatos competitivos nos brindou com o atual governo, cuja principal função parece ser discutir valores morais em vez de governar.
Por isso, somos hoje uma filósofocracia sem ninguém para dar um basta.
O presidente Bolsonaro se dedica mais a expor seus dilemas morais no Twitter do que apresentar um plano coerente de governo.
Seus ministros misturam teologia de botequim, teorias da conspiração e valores pessoais tentando criar uma ideologia instantânea e inócua como sopa em pó.
Somos uma nação aprisionada na interminável discussão do que é moralmente certo ou errado.
A Reforma da Previdência, por exemplo, não é um objetivo e, sim, uma discussão infindável de valores.
O mesmo vale para o porte de armas, a saúde, a segurança, a educação etc.
Discutir a mudança tornou-se muito mais importante do que qualquer ato neste sentido.
Afinal, bater boca por aí e aceitar provocações compromete muito menos do que decidir as coisas.
E para coroar a situação, ainda nos valemos de argumentos medíocres, ralos, pedestres.
Como disse Woody Allen em um de seus comentários mais filosóficos:
– A comida deste asilo é ruim. E vem pouca.
Como discutir sob um viés moral é melhor que decidir de verdade, ficamos presos em um ciclo interminável que não apresenta respostas para nada.
Para piorar, nossa capacidade de argumentação é medíocre