O homem que sabia de menos 04/08/2007
- O Estado de S.Paulo
Se algum gaiato quisesse fazer uma paródia do clássico de Alfred Hitchcock de 1934, refilmado em 1956, The man who knew too much, dificilmente encontraria um personagem melhor do que o presidente Lula - o homem que sabia de menos. E não digam os lulistas que é outro ataque leviano da imprensa cúmplice das “elites golpistas”. É de figurar no Guinness a lista de fatos e situações das quais, nas suas próprias palavras, só teve ciência tarde demais, como declarou na reunião do conselho político do governo, agora para se eximir do apagão aéreo. Os pontos altos, por assim dizer, do alheamento invocado por Lula a fim de se auto-absolver de tudo que possa inculpá-lo, por ação ou aceitação, formam uma seqüência de enrubescer.
Incluem o mensalão; os empréstimos do Banco Rural ao PT, via Marcos Valério; o caixa 2 do partido; a violação do sigilo bancário do caseiro que flagrara o então ministro Antonio Palocci numa casa de má fama; o “aloprado” golpe do falso dossiê antitucano no pleito de 2006; as fracassadas traficâncias do irmão Vavá… Sempre pronto a ser indulgente consigo mesmo - e a querer o mesmo tratamento dos brasileiros -, o homem que sabia de menos tentou justificar a sua ignorância do descalabro em curso no serviço de transporte aéreo nacional com um argumento esfarrapado. Disse que em nenhuma das cinco campanhas presidenciais de que participou as questões da aviação comercial foram debatidas. Esqueceu, aliás, que na quinta campanha ele já passara quatro anos no governo e tinha a obrigação de mostrar aos eleitores que conhecia os maiores problemas do País.
Não seria de esperar de algum de seus conselheiros políticos a temeridade de atalhar que a quebra da Varig - o marco zero da crise - precedeu a última campanha. E que a tragédia do Boeing da Gol - que expôs os problemas estruturais do dispositivo de controle de vôo no País - ocorreu a dois dias do primeiro turno da eleição que manteve Lula no Planalto. Depois, permitiu-se brindar o grupo de familiares das vítimas do Airbus da TAM recebidos em palácio com a afrontosa alegação de que o sistema está em crise “há uns 60 anos”. O pior foi a imprópria metáfora que escolheu para, afinal, rebater que tenha tirado o corpo do apagão. Ele se comparou ao portador de um câncer que, ignorando o mal que o acomete, acha que está tudo bem e, quando vai ver, está com metástase.
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Ora, o caos aéreo foi tudo menos um tumor assintomático. Já em março de 2003, o então ministro da Defesa, José Viegas, alertou o presidente por escrito para as mazelas do sistema. E foi o próprio Lula que ordenou que se marcasse dia e hora para curar a enfermidade; depois, quando ela continuou patentemente na mesma, isso não abalou sua inerte indiferença. O presidente já teria ido além da conta se ficasse na teoria da metástase para fazer praça da pretensa inocência. Mas, bem a seu feitio, como quem ergue os braços e abre as mãos em sinal de desalento, disparou uma segunda metáfora sobre o “problemão” - ainda para enxotar as próprias e intransferíveis responsabilidades. “Cachorro que tem muitos donos morre de fome porque ninguém cuida”, ensinou aos seus interlocutores políticos.
De fato, o que não falta no Brasil são órgãos de alguma forma incumbidos de cuidar do transporte aéreo civil e da segurança de vôo no espaço nacional. E, de fato também, essa multiplicidade tem servido antes de mais nada para facilitar o jogo de empurra quando as coisas saem dos eixos - o que devia ser uma exceção, mas é a regra. Ocorre que as populações elegem chefes de governo não na esperança de que cuidem diretamente de tudo, mas na expectativa de que, conhecendo os problemas a resolver, cobrarão resultados dos administradores diretos - e nunca dirão “não é comigo”. Mas Lula não é de governar. É de disputar eleições. Na mesma reunião do conselho integrado por representantes dos 11 partidos do seu governo de coalizão, o presidente pôs na mesa o que efetivamente o preocupa.
É o pleito municipal do próximo ano, ensaio geral para a sucessão de 2010. “A eleição está chegando”, exortou os ouvintes, a 14 meses da escolha dos futuros prefeitos e vereadores. Apelou para a unidade da base governista - e fez uma promessa de trabalho na qual, dado o retrospecto, se pode acreditar piamente. Avisou que se tornará um “eterno palanqueiro”. Perdoe-se o leitor que indagar, ingenuamente: “Mas alguma vez ele foi outra coisa?”