Justiça é muito barata para quem não tem razão 06/04/2008
- Maria Fernanda Erdelyi e Rodrigo Haidar - Revista Consultor Jurídico
Humberto Gomes de Barros assume a presidência do Superior Tribunal de Justiça nesta segunda,feira, (7/4). No dia 23 de julho, ele completa 70 anos, deixa o posto e o tribunal, expulso pela aposentadoria compulsória. Sua presidencia está condenada a ser curta, mas parece predestinada a ser agitada.
Em entrevista concedida ao site Consultor Jurídico em seu gabinete no STJ, o ministro afirmou que não está preocupado em fazer em menos de quatro meses o que seus colegas têm dois anos para fazer. “Um bom presidente de tribunal não deve fazer grandes reviravoltas porque o Judiciário brasileiro precisa é de trabalho contínuo de aperfeiçoamento.”
Mas se promete ser cauteloso na administração, não há dúvidas de que será agressivo no cumprimento de seu papel institucional. Gomes de Barros é um crítico feroz do sistema de Justiça: advogados, juizes, STJ, CNJ, OAB, ninguém escapa. Mas o alvo preferido de seus petardos é o Estado.
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“Sentença contra a Fazenda não vale coisa alguma”, afirma, mirando o calote institucional do poder público chamado precatório. “É muito melhor que haja alguma injustiça com segurança, do que uma pretensa justiça com insegurança jurídica”, critica, ao mirar a contínua mudança de jurisprudência do STJ.
O ministro é um bom contador de causos. Na entrevista, recordou do primeiro processo em que atuou como solicitador acadêmico (similar ao estagiário de hoje) no quarto ano da faculdade. “Uma colega me arranjou uma causa trabalhista e eu estudei o diabo para aquele processo. Na audiência, comecei a fazer as perguntas direto para a testemunha. Aí o juiz me diz: ‘O senhor tem que fazer as perguntas para mim’. E eu respondi: ‘Mas, doutor, eu fiz as perguntas ao senhor. É que gosto de olhar nos olhos da testemunha, mas estou perguntando a Vossa Excelência’.”
Humberto Gomes de Barros cursou o primeiro ano de Direito na Faculdade de Alagoas. Depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, então capital do país, porque o pai, Carlos Gomes de Barros, foi eleito deputado federal. Formou-se em 1962, na Universidade do Brasil. Foi procurador do Distrito Federal e advogado de 1963 a 1991, quando foi indicado ao STJ pelo presidente Fernando Collor.
Leia a entrevista:
Não assusta assumir a direção de um tribunal que recebe mais de 300 mil processos por ano?
— Não. Digerir uma parte destes 300 mil recursos, que eu já fiz aqui no gabinete, é mais difícil. Mas há soluções simples para evitar esse fluxo enorme de recursos. E a maior parte delas é legislativa. Porque o Judiciário não pode modificar as leis processuais e é obrigado a segui-las para assegurar o direito ao devido processo legal. Logo, as mudanças estão nas mãos do Legislativo. Juiz que legisla é ditador.
Qual seria o instrumento ideal para o STJ conter o volume excessivo de recursos? O Supremo tem a ajuda da Repercussão Geral e da Súmula Vinculante.
— Eu não vejo grande alcance na Súmula Vinculante, porque ela é um enunciado como a lei. A lei dita: furto é crime. Aí, vem a Súmula e determina: tirar dinheiro do marido não é furto. Então, a Súmula apenas desdobrou aquele dispositivo, fez quase um parágrafo na norma que proíbe furtar. E esse parágrafo ainda está sujeito a outras interpretações. Com a cultura que nós temos hoje, haverá recurso de qualquer decisão que aplicar a Súmula Vinculante.
Mas algo tem de ser feito, não?
— Sim. Mas o principal problema é que a Justiça brasileira é muito barata para quem não tem razão. Não há nada melhor do que empurrar com a barriga durante anos e anos a obrigação de pagar uma dívida, com juros que até há pouco tempo eram de 0,5% ao mês. Agora, são de 1%. Perto dos juros bancários, isso significa nada. A alternativa de adiar o pagamento de uma obrigação tem de deixar de ser sedutora. O duplo grau de jurisdição é sagrado: tenho de apelar de uma decisão de primeiro grau que contraria meu interesse. A partir daí, tenho de pagar para ver. Ou seja, é preciso impor uma sanção para quem recorre sem razão, a chamada sucumbência recursal. Isso é bom pra todo mundo. Até para o advogado, que vai orientar melhor o cliente: “podemos até recorrer, mas a possibilidade de reformar a decisão é remota”. Como ninguém gosta de dar dinheiro para o adversário...
— Claro. Por exemplo, o artigo 518 do Código de Processo Civil permite ao juiz não receber recurso de apelação quando sua sentença estiver em conformidade com súmula do STJ ou do STF. Mas há o problema cultural. Os juízes nem sempre concordam com as nossas decisões. Os do Rio Grande do Sul, então, são mestres em confrontar nossa jurisprudência. Com isso, além de estimular a litigiosidade, causam prejuízos à parte que pretendem beneficiar porque dão falsas esperanças de que ela pode ganhar o recurso.
Em razão da lentidão e do acúmulo de processos, o Poder Judiciário fica com a pecha de ineficiente. Qual a parte da culpa por essa imagem que pode ser atribuída ao Executivo e ao Legislativo?
— Uma grande parte. O Executivo, por exemplo, construiu um processo lateral ao Processo Civil brasileiro. Nas causas em que é parte, o Estado tem prazos em dobro; enquanto as intimações aos particulares são feitas pelo jornal, as intimações contra a Fazenda têm de ser feitas pessoalmente. Esses são pequenos exemplos que atrasam o processo. E a sentença contra a Fazenda não vale coisa alguma. Houve um avanço legislativo, do qual eu participei: se o devedor é condenado ao pagamento de quantia certa, tem de pagar em 15 dias, sob pena de multa de 10% do valor da condenação.
Isso deu mais efetividade às decisões.
— Deu muito mais efetividade no caso de particulares. Mas se o processo é contra o Poder Público, não adianta. O Brasil é o único país civilizado proibido de cumprir decisão judicial. Depois de ganhar uma ação contra o Estado, o cidadão entra com o processo de execução, que dura tanto quanto o processo principal. Quando acaba a execução, o vencedor ainda não recebe o pagamento. Ele recebe um precatório, que deixou de ser uma ordem judicial. O precatório é um pedido do juiz para que no próximo orçamento o governo reserve um dinheirinho para pagar aquela dívida. E o governo só reserva quando quer. O sistema de precatório pode ser resumido em uma frase: “Devo, não nego, pago quando quiser”.
Qual a culpa dos advogados pelo excesso de recursos?
— O advogado não tem culpa. O advogado é obrigado a recorrer, por dever de ofício.
Mas há recursos claramente interpostos para adiar o cumprimento de decisões. Dias atrás o Plenário do Supremo julgava Embargos de Declaração em Embargos de Declaração em Agravo Regimental em Embargos de Divergência... Os juízes não têm de combater com multas mais pesadas a litigância de má-fé?
— É difícil determinar o que é litigância de má-fé. Porque os recursos estão previstos em lei. Assim, é preciso definir melhor a litigância de má-fé. Como toda infração, ela precisa estar muito bem tipificada em lei. E não está.
Nos últimos cinco anos, o STJ teve um terço de sua composição renovada. Com isso, veio a natural mudança de jurisprudência que acompanha a renovação de todo colegiado. Como o senhor vê esse fenômeno?
— Para um tribunal que deve fixar a jurisprudência, isso é problemático. Aqui no STJ nós também precisamos de disciplina. Quando se fixa uma orientação, é preciso ir em frente. O tribunal não pode se comportar como a mulher de Ló. Na destruição de Sodoma, Ló e sua família tinham de deixar a cidade sem olhar para trás. Sua mulher olha e se transforma em uma estátua de sal. E a estátua de sal está fadada a derreter na primeira chuva. O tribunal não pode ficar olhando para trás. Nossa jurisprudência tem que ser sólida. É muito melhor que haja alguma injustiça com segurança, do que uma pretensa justiça com insegurança jurídica.
Ao falar da insegurança jurídica em um voto, o senhor chegou a comparar o STJ a um banana boat, cujo objetivo seria o de derrubar cidadão. O senhor ainda acha que o tribunal quer derrubar o contribuinte ou há uma mudança natural de posição sobre determinadas questões?
— O tribunal vem se conscientizando de que tem de manter-se mais firme. O que justifica a existência do Superior Tribunal de Justiça é a unificação da interpretação da lei e quem chega aqui tem de ter consciência disso ao propor mudanças na jurisprudência. Se a cada mudança de composição, a jurisprudência também mudar, nunca haverá uniformização.
Mas, quando chegou ao tribunal, o senhor também não quis inovar? Isso não é natural?
— Existe a ânsia de mudar de quem é mais novo. Natural. O jovem ministro chega fogoso. Eu mesmo propus inovações quando cheguei. Lembro de uma série de conflitos de competência entre a Justiça Estadual e a Justiça do Trabalho propostos por um mesmo juiz, sobre a mesma questão. Depois de a Seção julgar diversas vezes o mesmo tema, eu usei um dispositivo do Regimento Interno que permitia ao relator negar seguimento a processos manifestamente incabíveis. Então, decidi: “este conflito já não existe, está superado por tais e tais precedentes, devolvam-se os autos”. Houve uma pequena reação dos colegas, mas a decisão era tão racional que foi aceita. E acho que foi a primeira vez que houve uma decisão unipessoal — não gosto da expressão monocrática.
O senhor, que chegou ao STJ pelo quinto constitucional, enxerga hoje um movimento crescente contra as vagas reservadas para a advocacia e para o Ministério Público nos tribunais?
— Os juízes estão em movimento declarado contra o quinto. O argumento é o de que as vagas têm de ser ocupadas apenas por juízes concursados. Mas os advogados fazem concurso para entrar na Ordem, por exemplo. Ser advogado é tão ou mais difícil do que ser juiz. O advogado faz um concurso por dia. Cada sustentação oral é uma prova. Escrever uma petição inicial é muito mais difícil do que emitir um voto, do que dar uma sentença. Eu costumo brincar que minha função é mais fácil do que as dos advogados, porque o meu trabalho é botar defeito no trabalho de um dos advogados: “esse aqui está certo, o outro não está”. O quinto constitucional é importante para manter o Judiciário livre da “juizite”. É legítimo pensar em aprimorar a forma de escolha, mas não acabar com o quinto. Não é porque há fraude em concursos para juiz que vamos acabar com eles. Eu não seria melhor juiz se tivesse sido juiz de carreira.
Na semana passada, o advogado Paulo Lôbo, que ocupa uma das vagas da OAB no Conselho Nacional de Justiça, acusou o CNJ de corporativismo. Segundo ele, há muitos juízes na composição do Conselho. O senhor concorda com ele?
— Por esse argumento, poderíamos indicar alguns juízes para o Conselho Federal da Ordem dos Advogados, porque eles também têm corporativismo. Sou amigo do Paulo, tenho carinho por ele, mas ele está em um colegiado. Ele perde e ele ganha. Quando ele consegue vencer, não há corporativismo? Mas, para ser franco, considero o CNJ um órgão desnecessário.
Desnecessário? Mas o Conselho tem a missão de estruturar o Poder Judiciário, fixar metas de gestão...
— A gestão do Poder Judiciário poderia ser feita pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem o Conselho da Justiça Federal. Criou-se outro órgão para quê? Órgão de controle externo o CNJ não é. A sociedade civil que comporia o conselho teria de ser representada por entidades que não integram o Estado. Mas as pessoas que integram o conselho são pagas pelo Estado. Logo, não há controle externo. E o planejamento da gestão tem de ser feito pela lei. O Supremo tem competência para fazer a lei de organização judiciária.
A ministra Ellen Gracie, no fim de sua gestão, afirmou que, apesar de o Conselho ser um órgão jovem, havia alcançado grandes feitos. Entre eles, citou o combate ao nepotismo e o movimento Conciliar é Legal...
— E precisa do Conselho para fazer isso? O Conselho conciliou alguma coisa? Não. A Justiça é que conciliou. E o Supremo já havia proibido o nepotismo. O movimento anti-nepotismo é um movimento cultural nacional. A própria ministra Ellen disse que o Conselho é um órgão impróprio em um Estado onde o Judiciário é poder. Eu respeito extremamente as pessoas que compõem o CNJ. O que critico é a criação de órgãos para resolver problemas, porque sai mais caro.
E o que o senhor acha do trabalho da Corregedoria do CNJ?
— O ministro Cesar Asfor Rocha está fazendo um levantamento importante. Por exemplo, qual é o padrão para medir a produtividade do juiz? Não há. O levantamento permitirá saber quantos processos julgou o juiz de cada comarca. E a comparação nos trará um padrão. É um projeto inovador.
Como ficou o clima no tribunal depois das acusações contra o ministro Paulo Medina [acusado de negociar, por intermédio de seu irmão Virgílio Medina, que é advogado, por R$ 1 milhão, uma liminar para liberar máquinas de caça-níqueis]?
— Foi muito doloroso. O ministro Medina não foi um sujeito que surgiu do nada. Ele foi presidente da AMB. Era um militante. Honestamente, não vi ainda nenhuma prova concreta contra ele e espero que não haja.
O que é possível fazer em menos de quatros meses na presidência do STJ?
- Dar continuidade ao trabalho que é bem feito. Um bom presidente de tribunal não deve fazer grandes reviravoltas porque o Judiciário brasileiro precisa é de trabalho contínuo de aperfeiçoamento. O presidente Barros Monteiro, por exemplo, identificou e atacou o problema terrível da distribuição de agravos manifestamente incabíveis. Sem escarcéu, com serenidade e muita eficiência ele montou uma equipe encarregada de fazer a triagem e impediu que milhares de processos que seriam certamente julgados improcedentes chegassem aos gabinetes. Esse é o tipo de trabalho que precisamos.
A administração do ministro Barros Monteiro é apontada como uma administração muito técnica e discreta. Por isso, contrasta com a gestão anterior à dele, do ministro Edson Vidigal, que era mais política. O senhor se identifica mais com a gestão do Barros Monteiro ou com a do Vidigal?
— Eu não critico o Vidigal, que fez muita coisa útil na direção do tribunal, mas critico o temperamento dele. O Barros Monteiro tem um temperamento mais sereno de juiz de carreira. Eu sou um advogado de carreira, como é o Vidigal. Mas, como sempre fiz advocacia na área cível, nunca fui dado a muito escarcéu. Tive muito êxito na única função administrativa que exerci na carreira, a de procurador-geral do Distrito Federal, há cerca de 20 anos.