Crise alimentar inverte papéis nas negociações da OMC 29/04/2008
- Aude Marcovitch - France Presse
A crise alimentar inverteu os papéis na OMC (Organização Mundial do Comércio): grandes exportadores agrícolas como Brasil, Argentina e Índia, tradicionalmente liberais no comércio mundial, impõem agora restrições à exportação, enquanto os protecionistas defendem posições liberais.
Para enfrentar a escassez de alimentos e a disparada dos preços dos produtos alimentícios, Brasil, Argentina, Vietnã, Índia e Egito impuseram recentemente limitações à exportação de alguns produtos.
Mas nas negociações da Rodada Doha para a liberalização do comércio na OMC, Brasil e Argentina pertencem ao Grupo de Cairns (formado por 18 grandes produtores agrícolas), o mais agressivo em matéria de abertura comercial.
PUBLICIDADE
Os membros do Grupo de Cairns pediram insistentemente à União Européia e aos Estados Unidos que reduzam as tarifas alfandegárias para permitir a maior entrada de seus produtos alimentícios.
As novas medidas adotadas por estes países em desenvolvimento incomodam inclusive suas representações em Genebra.
Um alto funcionário brasileiro disse à AFP que ¨não compreende¨ seu governo, que na quinta-feira anunciou a interrupção de suas exportações de arroz e o leilão de parte das reservas para conter a alta dos preços.
¨Trata-se de reservas públicas e não da venda por parte de empresas privadas¨, afirmou o diplomata, reconhecendo também que este ¨elemento de intervenção nos mercados¨ poderá ser mal recebido nas negociações da OMC.
Estas medidas já causaram descontentamento: o Japão pediu que a questão seja abordada na quarta-feira no comitê agrícola da OMC. Grande importador de produtos agrícolas, o Japão impõe tarifas aduaneiras particularmente dissuasivas às importações de arroz, na ordem de 500%.
¨Não somos contra as proibições e as restrições às exportações¨, assegurou Takaaki Kawakami, primeiro secretário da missão do Japão na OMC. ¨Mas os países fortemente dependentes das importações como nós não querem pôr em perigo a alimentação de seus povos.¨
Um plano proposto por Tóquio obrigaria os países que impõem restrições a notificá-las à OMC em um prazo de 90 dias e a justificá-las. Além disso, as medidas não poderiam durar mais de um ano.
Atualmente, segundo o acordo sobre a agricultura assinado como parte do GATT (acordo geral sobre as tarifas alfandegárias e o comércio), em 1994, os países em desenvolvimento podem impor restrições à exportação.
Aproveitando a situação que faz com que os países emergentes se contradigam em relação ao seu discurso nas negociações, o comissário de Comércio europeu, Peter Mandelson, considerou recentemente que a taxação das exportações ou as quotas geram apenas uma ¨ilusão de segurança alimentar¨.
Para os observadores dos países em desenvolvimento, os impostos à exportação correm o risco de piorar o abastecimento dos mais desfavorecidos.
¨Estas restrições poderão colocar os países pobres que dependem das importações em uma situação ainda mais volátil e crítica do que é atualmente¨, disse Carin Smaller, diretora do centro Institute for Agriculture and Trade Policy em Genebra.
¨Os países africanos, como Gana, Senegal, Costa do Marfim e Camarões dependem amplamente das importações obtidas no mercado mundial, como o arroz da Índia, a soja do Brasil ou o trigo da Argentina¨, acrescentou.
A Argentina, um dos maiores produtores de trigo do mundo e sexto exportador mundial, mantém suspensas as exportações de trigo e limitou as de carne bovina.
Como gesto tranqüilizador, a Índia, que recentemente suspendeu as exportações de arroz, prometeu fornecer ao Senegal 600 mil toneladas deste cereal por ano durante seis anos, anunciou na quinta-feira o presidente senegalês Abdulaye Wade.