O referendo realizado no domingo, no departamento boliviano de Santa Cruz, teve os resultados esperados. O estatuto de autonomia do departamento (Estado) foi aprovado por cerca de 85% dos votos válidos e os partidários do presidente Evo Morales, contrário à realização da consulta, só conseguiram impedir a votação em 3% das juntas eleitorais.
O governo central havia constatado, há dias, que não teria condições de impedir a votação e tomou a acertada decisão de manter aquarteladas as tropas militares e a polícia, e de recomendar aos seus seguidores que se abstivessem de promover manifestações violentas contra o referendo. Mesmo assim, em distúrbios isolados, morreu uma pessoa e pelo menos uma vintena ficou ferida.
Dentro de um mês, haverá referendos nos departamentos de Pando e Beni. No final de julho, será a vez de Tarija, onde se localizam os principais campos de gás natural. Os departamentos de Cochabamba e Chuquisaca também estão organizando consultas populares.
PUBLICIDADE
A aprovação popular de estatutos de autonomia foi a maneira encontrada pelos seis dos nove departamentos em que se divide a Bolívia para obrigar o governo central a rever o projeto de constituição aprovado em novembro pela Assembléia Nacional, em sessão realizada num quartel, à qual os deputados de oposição foram impedidos de comparecer por uma turba de manifestantes do Movimento ao Socialismo, de Evo Morales.
O projeto de constituição aumenta os poderes do governo central - a Bolívia é um Estado unitário - e retira funções dos departamentos, que há dois anos conquistaram o direito de eleger seus governadores por voto universal e direto. (Antes, eram nomeados pelo presidente da República.)
Esse projeto, para entrar em vigor, precisa ser submetido a referendo, a ser marcado pela Assembléia e pela Corte Suprema. Mas o Legislativo está paralisado, porque os partidos do governo e da oposição estão em virtual pé de guerra; e a Suprema Corte praticamente não existe, desde que o Movimento ao Socialismo aprovou o afastamento de quatro dos cinco juízes e não conseguiu aprovar os nomes de seus substitutos.
O referendo de Santa Cruz e os que se seguirão dentro de um mês são as manifestações menos dramáticas do caos institucional criado na Bolívia pelas atabalhoadas reformas implantadas por Evo Morales. Ao contrário do que afirma a propaganda do governo central, a autonomia não significa separatismo. O estatuto de Santa Cruz, por exemplo, deixa claro que, atribuindo-se poderes para definir políticas de terra, saúde, educação, gestão de recursos naturais e impostos, o departamento permanece vinculado ao Estado unitário da Bolívia.
Com os referendos, a oposição a Evo Morales pretende obter algumas vantagens políticas que vão além da conquista da autonomia administrativa. A principal é isolar o governo central e obrigá-lo a negociar as reformas estruturais. Afinal, dificilmente Evo Morales terá condições de governar o país, e muito menos de introduzir medidas radicais nesses dois anos e meio de mandato que lhe restam, contando com o apoio de apenas três dos nove departamentos da Bolívia.
As autoridades de Santa Cruz demonstraram, com o referendo de domingo, que têm amplo apoio popular. Obtido resultado semelhante nos departamentos que farão consultas populares em junho e julho, a maioria dos bolivianos terá passado julgamento sobre as políticas de Evo Morales. Mais do que isso, terá explicitado o apoio a uma política de descentralização que pode, eventualmente, determinar o fim do regime unitário e a instituição de alguma forma de federalismo.
Mas, para isso, é preciso que as duas partes se disponham a negociar para romper o impasse que criaram: La Paz não pode governar sem os departamentos e estes não podem implementar os estatutos de autonomia sem o beneplácito do poder central.
O negociador escolhido pela OEA, Dante Caputo, depois de três viagens à Bolívia, afirma que as duas partes já sabem qual é a solução para o impasse. O governo já aceitou mudar a nova Constituição, adotando um texto técnico e não político, e a oposição já aceitou adaptar os estatutos de autonomia à nova Constituição. O problema é que o que o presidente e os governadores dizem num momento, negam no outro.