Pedir fim do álcool do Brasil é irresponsável, diz relator da ONU 30/05/2008
- Daniel Gallas - BBC
O novo relator especial da ONU para o Direito ao Alimento, Olivier De Schutter, disse em entrevista à BBC Brasil que pedir o fim do programa de álcool no Brasil seria ¨socialmente irresponsável¨.
¨(O setor) oferece empregos para pequenos produtores e para trabalhadores rurais, então eu acho que seria socialmente irresponsável pedir que esse programa seja terminado¨, disse Schutter.
O relator, porém, se diz preocupado com as condições de trabalho nas plantações de cana e diz houve superestimação dos benefícios ecológicos do que prefere chamar de ¨agrocombustíveis¨.
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Schutter também se distanciou de declarações e propostas de seu antecessor, Jean Ziegler, que deixou o cargo em abril e era considerado um dos principais opositores dos biocumbustíves dentro da ONU.
Ziegler chegou a propôr uma moratória na produção de biocombustíveis, que classificou de ¨um crime contra a humanidade¨.
¨Eu não concordo nem com a declaração, nem com a proposta¨, disse Schutter.
Na próxima semana, Schutter participará da Conferência da FAO (agência da ONU para agricultura e alimentos) em Roma, que terá presença de vários chefes de Estado, entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Confira abaixo a entrevista de Olivier De Schutter à BBC Brasil:.
Como o senhor avalia a reação da comunidade internacional para a crise do preço dos alimentos?
- Eu acho que há sinais encorajadores e também fontes de preocupação. Os sinais encorajadores são o fato de que as agências da ONU estão coordenando os seus esforços e aliando os seus esforços com os do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio.
Existem, no entanto, diversas fontes de preocupação. Um problema é que a dimensão dos direitos humanos desta crise está sendo negligenciada.
Minha preocupação é também que determinados temas são uma espécie de tabu ou subestimados. Um deles é o papel da especulação na crise atual. O fato de que muitos fundos de investimento estão se mudando em massa dos mercados de ações para não só mercados de petróleo desde 2002 e 2003, e agora para o mercado de commodities primárias e de comida.
Esse papel perverso da especulação financeira na crise, que muitos analistas acreditam que responde por um terço do atual aumento de preços em um ano, é algo que no momento simplesmente não está sendo administrado.
Finalmente o que também não está sendo administrado é o papel das corporações nos sistemas de produção e distribuição de alimentos. As corporações nas duas pontas da cadeia --as que produzem e as que processam alimentos-- e também as empresas varejistas que vendem os alimentos para os consumidores estão conseguindo lucros muito importantes, não apesar do atual aumento dos preços, mas justamente graças a esse aumento.
E é uma fonte específica de preocupação que esses aumentos de preços não estão beneficiando pequenos produtores por causa da falta de poder de mercado deles para negociar seus preços com as corporações maiores. Esse é outro tema que eu acho que a comunidade internacional precisa administrar de forma muito mais decisiva.
Qual é o papel dos biocombustíveis na crise atual, na sua avaliação?
- Eu acho, como muitos acreditam, que este é um dos fatores-chave para explicar a crise atual. E, é claro, é muito difícil definir precisamente qual é o percentual do aumento dos preços que isso (o biocombustível) é responsável. Especialmente desde que o aumento na produção dos agrocombustíveis está muito intimamente ligado ao aumento no preço do petróleo, que também é isoladamente um dos fatores que tem provocado a alta do preço dos alimentos.
Eu compartilho a visão de muitos analistas de que o aumento da produção de agrocombustíveis pode responder entre 15% a 30% do aumento do preço (de alimentos) desde 2007 e 2008. Seria necessário distinguir com muito cuidado entre as diferentes produções de agrocombustíveis. E eu não penso que o impacto de se produzir álcool a partir da cana-de-açúcar no Brasil, o que tem sido feito há 30 anos, poderia ser colocado no mesmo plano que a transformação do milho em álcool nos Estados Unidos, ou das metas muito ambiciosas que a União Européia estabeleceu para o uso de agrocombustíveis em transportes.
Isso deu um sinal muito claro para especuladores de que os preços dos alimentos vão continuar aumentando, porque mais colheitas serão usadas para desenvolver álcool e biodiesel, ou, pelo menos, que mais terras aráveis serão deslocadas da produção de comida para a produção de combustível.
O relator anterior da ONU para o direito ao alimento, Jean Ziegler, quando estava no cargo, classificou como ¨um crime contra a humanidade o deslocamento de terras aráveis para a produção de colheitas que são queimadas como combustíveis¨. E ele propôs uma moratória de cinco anos na produção de biocombustíveis. O senhor concorda com essa declaração dele e essa proposta?
- Eu não concordo nem com a declaração, nem com a proposta. Mas eu acho que a expressão ¨crime contra a humanidade¨ foi apenas uma forma mais gráfica --e obviamente incorreta-- para expressar a preocupação do relator especial anterior sobre este tema.
Quanto à moratória de cinco anos, eu acho que é uma medida generalizadora e que não é suficientemente cuidadosa com os diferentes tipos de agrocombustíveis. Por exemplo, na Índia e na China, existem experiências muito interessantes com plantas como jatropha ou sorgo doce, que não competem com a produção de alimentos. Jatropha, por exemplo, pode ser plantada em áreas quase desérticas onde alimentos não poderiam ser cultivados. Sorgo doce produz comida e também alimento com partes diferentes da mesma planta.
O que eu pedi foi que se desista imediatamente das metas quantitativas que a União Européia e os Estados Unidos estabeleceram para si, que eu acredito que são irreais, nocivas ao ambiente e que servem de sinais para o mercado encorajando a especulação em commodities de alimentos.
Então, na questão de biocombustíveis, o senhor diria que o Brasil e a Índia estão no caminho certo com os seus programas de álcool e biodiesel, enquanto Estados Unidos e Europa estariam no caminho errado com as suas metas?
- Não, eu não digo isso. Eu diria que no Brasil os problemas são diferentes daqueles que temos nos Estados Unidos e na União Européia. E eu não acredito que seja pensável, realista ou até mesmo desejável simplesmente fingir que podemos reverter o relógio neste tema. Cinqüenta e quatro por cento da cana-de-açúcar produzida no Brasil é para álcool e eu não acredito que seja realístico simplesmente interromper isso imediatamente.
Além disso, esta é uma indústria que emprega muito intensivamente, ela provém empregos para pequenos produtores e para trabalhadores rurais, então eu acho que seria socialmente irresponsável pedir que esse programa seja terminado.
No entanto, eu devo enfatizar que as condições sociais que estes trabalhadores enfrentam nas plantações de cana são extremamente preocupantes e que, apesar de o equilíbrio ambiental da cana-de-açúcar produzida no Brasil não ser tão ruim quanto o do milho ou do dendê, por exemplo, o equilíbrio ambiental ainda não é tão positivo quanto se pode esperar. E é por isso que eu prefiro usar o termo ¨agrocombustíveis¨ do que ¨biocombustíveis¨.
Eu acho que as virtudes para a preservação do ambiente de agrocombustíveis foram vastamente exageradas. Nós negligenciamos os impactos no desmatamento, no uso da água e da energia e nós acabamos superestimando o benefício ambiental dos agrocombustíveis.
Na sua visão, qual seria um bom consenso internacional sobre biocombustíveis e um bom resultado da Conferência da FAO em Roma?
- A minha esperança é que este seja o começo do processo. Mas a declaração que está sendo esboçada é, francamente, muito superficial e não vem acompanhada de um calendário específico, plano de ação ou metas quatitativas.
Eu acho que esta conferência é importante porque pela primeira vez os Estados estão realmente falando em alto nível um com ou outro, em um momento em que as diferentes reações têm atrapalhado os esforços isolados.
Por exemplo, alguns Estados estão restringindo as exportações de commodities de alimento, como o arroz e o trigo, enquanto outros Estados estão tentando comprar no mercado internacional por preços que são extremamente altos, devido justamente às restrições de importações. Os Estados não estão se coordenando entre si e isso levou para mais especulações.
(A Cúpula de) Roma é extremamente importante porque dá um sinal de que os Estados vão se coordenar melhor no futuro, mas o conteúdo do que vai ser adotado, eu acho, vai decepcionar bastante as altas expectativas que algumas pessoas têm no processo.
Que impacto o senhor acha que a crise atual terá -- se ela continuar como está -- especificamente no Brasil?
- Eu acho que o Brasil está em uma posição bastante interessante, porque ele adotou em 2006 uma legislação interessante sobre direito à alimentação. Ele montou o programa Fome Zero, ele tem uma Bolsa Escola bastante ambiciosa. Por esses motivos eu acho que a população brasileira, apesar das desigualdades muito grandes que infelizmente ainda existem, está muito melhor protegida do que outras populações.
Países que não têm programas deste tipo - e este é o caso infelizmente de muitos países da África Subsaariana - verão suas populações sofrerem bastante com o impacto desta crise. Com sorte no Brasil, assim como na Índia, as redes de segurança estão no lugar certo para de certa forma proteger o povo.