Hoje, Dia dos Namorados, é nos EUA o Loving Day. Loving é o sugestivo sobrenome do branco Richard, que se casou em 1958 com a negra Mildred Jeter, ambos do Estado de Virgínia. Eles se casaram no Distrito de Colúmbia, pois a Virgínia proibia uniões inter-raciais, mas cometeram a imprudência de continuar a residir no Condado de Caroline. Um tribunal os condenou a um ano de prisão, com suspensão da sentença condicional à transferência do casal para outro Estado. Richard e Mildred se mudaram e deflagraram uma batalha judicial que chegou à Corte Suprema.
No 12 de junho de 1967, a Corte deu ganho de causa aos Lovings. O veredicto saiu três anos depois da Lei dos Direitos Civis, concluiu uma longa trajetória de apelos judiciais contra as leis antimiscigenação iniciada em 1883 e derrubou os pilares remanescentes da segregação legal de raças.
Aquele marco histórico é celebrado em cidades americanas por meio de um modesto projeto cívico de exaltação da tolerância e da igualdade. Mas a comemoração não tem o apoio dos arautos de ações afirmativas de raça nem o patrocínio milionário da Fundação Ford: a história dos Lovings não serve ao propósito de dividir a sociedade em grupos que se definem pelo sangue.
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O juiz que condenou Richard e Mildred escreveu: ¨Deus Todo-Poderoso criou as raças branca, negra, amarela, malaia e vermelha, e as colocou em continentes separados. O fato de que Ele separou as raças mostra que Ele não pretendia que as raças se misturassem.¨ Uma Corte de apelações reiterou a condenação, justificando-a sob o argumento de que a lei cumpria o desígnio de ¨preservar a integridade racial¨ dos cidadãos e evitar a ¨adulteração do sangue¨.
O sangue percorre toda essa história. As leis antimiscigenação difundiram-se com o retorno ao poder estadual das velhas elites do sul dos EUA, após o encerramento da Reconstrução, em 1877. Tais leis só podiam ser aplicadas mediante uma rigorosa delimitação das fronteiras da ¨raça branca¨.
A regra da gota de sangue única propiciou a delimitação. Depois de diversos ensaios, essa regra alcançou uma definição consensual na Lei de Integridade Racial de Virgínia, de 1924, formulada com a assessoria de Madison Grant, um célebre eugenista que inspirou o nazista Alfred Rosenberg. De acordo com ela, branco seria aquele ¨que não tenha traço algum de qualquer sangue senão o caucasiano¨ - com a curiosa ¨exceção Pocahontas¨, que admitia o rótulo de branco para indivíduos com um máximo de dezesseis avos de ¨sangue índio¨.
Walter Plecker, chefe de registro de estatísticas, simplificou a lei pela emissão de certidões de nascimento apenas nas categorias ¨branco¨ e ¨de cor¨, resumindo a dois grupos polares as seis raças descritas no texto legal. Com esse ato burocrático ele aboliu a ¨exceção Pocahontas¨ e, de passagem, cancelou a existência civil de índios no Estado.
A lógica da raça abomina a mestiçagem. No Brasil, sob o signo das leis raciais, o governo deu o primeiro passo na adoção de uma regra da gota de sangue única. Como os brasileiros insistem em usar termos fluidos para descrever a si próprios, determinou-se que, na divulgação de estatísticas, os grupos censitários ¨preto¨ e ¨pardo¨ sejam agrupados na categoria ¨negros¨. O segundo passo compete às universidades engajadas em programas de preferências raciais. Como a investigação do ¨sangue¨ não geraria resultados funcionais, pois significativa parcela dos brasileiros de pele clara tem ancestralidade africana, comissões universitárias formadas por acadêmicos racialistas e militantes de movimentos negros agem como substitutos de Plecker, determinando a ¨raça verdadeira¨ dos jovens candidatos e dividindo-os em ¨negros¨ e ¨não-negros¨.
A linguagem do sangue já invadiu a nossa Corte Suprema. O voto do relator, ministro Carlos Britto, no julgamento suspenso de uma ação que contesta o Programa Universidade para Todos (ProUni), introjeta a raça na lei ao justificar a discriminação reversa como ¨uma enfática proclamação de que o componente negro do sangue brasileiro é motivo de orgulho nacional¨ e estabelece uma relação espúria de descendência ao apresentar as cotas raciais como ¨uma espécie de pagamento da dívida fraternal que o país contraiu com os afrodescendentes, nos ignominiosos séculos da escravidão negra¨. Se a maioria da Corte seguir o voto do relator, estará aberta a trilha para a emissão de certificados raciais nominais para cada um dos cidadãos.
No veredicto de Loving versus Virgínia, os juízes caracterizaram as ¨distinções entre cidadãos derivadas apenas de suas ancestralidades¨ como ¨odiosas para um povo cujas instituições estão fundadas na doutrina da igualdade¨ e ficaram no limiar de declarar ilegais as classificações raciais. Depois, essas classificações ganharam um novo sopro de vida com a introdução das políticas de preferências raciais. Mas a crise do dogma da raça, sobre o qual se ergue o edifício do racismo, continua a se desenrolar e já atinge a esfera crucial do censo.
A regra da gota de sangue única precisa do Estado para funcionar. Desde o final do século 19, o censo americano encarregou-se de classificar as pessoas em categorias raciais fechadas e seus funcionários perscrutavam meticulosamente os indivíduos autodeclarados brancos em busca de traços denunciadores de gotas de ¨sangue negro¨. Há mais de uma década, contudo, enfrentando a fúria da poderosa rede de ONGs racialistas, grupos de cidadãos exigem a inclusão de uma categoria censitária multirracial. Em 2000, quase 22 milhões de pessoas rejeitaram descrever-se segundo os rótulos de raça do censo.
¨Rejeito uma política baseada unicamente em raça, sexo, orientação sexual ou vitimização.¨ Essas palavras, de Barack Obama, revelam que os EUA avançam um pouco mais na tentativa de desinventar as raças. Em contraste, por aqui, a meta é desinventar o Brasil, para consagrar as raças.
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*Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail:demetrio.magnoli@terra.com.br