Pela porta dos fundos, não 24/06/2008
- O Estado de S.Paulo
Nestes 10 dias que se seguiram ao brutal assassínio de três jovens moradores do Morro da Providência - entregues por um tenente do Exército, à frente de uma dezena de homens, a uma quadrilha de traficantes para que lhes aplicasse um ¨corretivo¨ -, o País vem discutindo uma série de questões decerto relevantes sobre a atuação das Forças Armadas, mas que apenas tangenciam o problema de fundo.
Em primeiro lugar, denunciou-se o emprego de tropa federal para dar cobertura a um projeto claramente eleitoreiro de reforma de casas no Morro da Providência, chamado Cimento Social.
Encampado pelo governo Lula, o projeto é uma jogada do senador Marcelo Crivella, da Igreja Universal - e do seu braço político, o Partido da República, a mesma agremiação a que pertence o vice-presidente da República, José Alencar -, que integra a enxundiosa base parlamentar do Planalto e pretende se eleger prefeito do Rio. (Logo se descobriu que a missão da tropa incluía a ¨garantia da lei e da ordem¨, para o que seria necessário um decreto presidencial, admissível em raras situações previstas na Constituição.)
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Segundo, focalizou-se a presumível promiscuidade entre militares e traficantes.
Ao se descobrir que a entrega dos jovens foi precedida de um contato com o comando da quadrilha do Morro da Mineira que os exterminaria, e que o ato em si foi tranqüilo - desembarcadas de um caminhão do Exército, as vítimas foram conduzidas aos seus algozes por um sargento com as mãos apaziguadoramente levantadas -, logicamente se passou a investigar se e quantos dos 200 soldados acantonados na Providência estariam contaminados por suas ligações com os bandos que controlam os morros.
Segundo o ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares, as unidades do Exército no Rio separam os recrutas, nos alojamentos, de acordo com a facção criminosa que domina as suas comunidades de origem.
Para o Comando Militar do Leste, ¨tal informação carece de fundamento¨. Em terceiro lugar, passou-se a debater a continuidade da proteção dada ao Cimento Social.
Uma ação civil pública pedindo a imediata retirada das tropas e sua substituição por soldados da Força Nacional de Segurança Pública foi acolhida pela juíza federal Regina Coelli Medeiros de Carvalho e em seguida reformada em instância superior.
A nova sentença, do desembargador Joaquim Antônio Castro Aguiar, manteve o Exército, reduzindo porém o contingente a 150 homens e limitando o seu raio de ação a 100 metros do local das obras. (Um dia depois, a imprensa identificou a presença de tropas em pelo menos outros dois pontos do morro.)
O juiz ordenou ao governo que apresente solução definitiva para o caso até quinta-feira. Por fim, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, tornou a defender o engajamento das Forças Armadas nas operações de ¨Garantia da Lei e da Ordem¨, nos termos de um projeto de lei a ser remetido ao Congresso definindo a conduta militar em tais circunstâncias.
O ministro parece imaginar - e esse é o ponto-chave insuficientemente posto em evidência diante da opinião pública - que o pretendido estatuto contornará o incontornável.
De um lado, o imperativo de manter a defesa da lei e da ordem no âmbito das instituições policiais que existem exatamente para isso, envidando-se todos os esforços concebíveis para que dêem conta da incumbência, a exemplo do que ocorreu em outros países cujas polícias, corrompidas pelos barões da droga, puderam ser razoavelmente saneadas porque isso se tornou ponto de honra para os respectivos governos.
De outro lado, o caráter contraproducente das tentativas de fazer o Exército ingressar pela porta dos fundos na garantia da segurança pública.
A sociedade deve entender que não há meio-termo: ou se investe pesadamente no expurgo dos policiais que transformaram delegacias e quartéis em valhacouto de bandidos ou as autoridades locais reconhecem explicitamente a sua impotência para levar a cabo a iniciativa.
Nessa indesejável hipótese extrema, a alternativa que resta, quaisquer que sejam os seus custos políticos, é a intervenção federal no Estado em causa, para legitimar a entrada do Exército nas suas áreas mais expostas ao banditismo.
Fora disso, concentre-se a Força na função para a qual surgiu - a defesa nacional.