A religião para conter o deserto? 18/07/2008
- Washington Novaes*
A recente divulgação de mais um relatório da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) da ONU, assim como novos congressos sobre desertificação no Brasil, trazem de volta o tema.
O relatório da FAO, com um balanço dos últimos 20 anos, diz que a degradação do solo no mundo - medida pelo declínio nas funções e na produtividade de um ecossistema - já atinge mais de 20% das terras ocupadas pela agricultura, 10% das pastagens, 30% das áreas de floresta. E afeta 1,5 bilhão de pessoas, com insegurança alimentar, perdas agrícolas, perda da biodiversidade, necessidade de migrar.
Também influi no clima, porque a perda de biomassa e de matéria orgânica no solo desprende carbono. E leva à redução do fluxo hidrológico, porque se reduz a capacidade de a terra desmatada reter água.
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A China está com 457 mil km2 afetados; a Índia, com 177 mil; a Indonésia, 86 mil; Bangladesh, 72 mil.
Para o Brasil, o relatório aponta 46 mil km2, embora nossos relatórios nacionais mencionem 180 mil km2 em diferentes etapas do processo de desertificação, principalmente no Semi-Árido nordestino, mais Espírito Santo e Minas Gerais (11 Estados ao todo).
Os relatórios apontam situações difíceis em áreas que o mundo se habituou a considerar desenvolvidas e ausentes de questões dessa natureza.
É o caso da Espanha, por exemplo, onde um terço do território é considerado como de ¨risco significativo¨ nessa área, principalmente por causa da escassez de água. Até o fim deste século, prevê-se que o fluxo hidrológico ali, especialmente no sul do país, diminua 22%. Barcelona, cidade admirada e invejada, enfrenta uma escassez inédita, que a leva a disputar com outras zonas as águas do Rio Ebro (que quer transpor e captar, para diminuir a crise). E até a proibir que se encham piscinas.
A Austrália é outra área com graves dificuldades, já que o fluxo das principais bacias hidrográficas caiu 41% - é o mais baixo em 117 anos, desde quando se têm registros - e afeta a produção de frutas, grãos e outros bens.
Certamente é essa uma das razões que levaram o país (o maior exportador de carvão no mundo) a mudar sua posição e aderir ao Protocolo de Kyoto, sobre mudanças climáticas.
As previsões dos cientistas para lá são de que as ¨ondas de calor¨ se tornarão muito mais freqüentes e afetarão ainda mais o fluxo dos rios (cada grau Celsius de alta na temperatura média pode reduzi-lo em 15%, dizem alguns cientistas).
O fato é que o drama da desertificação avança à razão de 60 mil km2 por ano no mundo. E seriam necessários, diz a ONU, pelo menos US$ 12 bilhões anuais para programas de informação, monitoramento e recuperação de áreas. Mas esses recursos não estão disponíveis, embora os prejuízos anuais sejam muito maiores que isso, sem falar no drama das migrações e conflitos que provocam.
No Brasil mesmo, os R$ 500 mil anuais teoricamente disponíveis para o Fundo de Iniciativas Sociais no Semi-Árido têm sido reduzidos a ridículos R$ 25 mil/ano. Quando deveríamos ser muito mais cuidadosos.
Além do Semi-Árido, as imagens de satélites mostram cada vez mais pontos problemáticos em todo o território nacional, da fronteira gaúcha ao sudoeste goiano. E já há alguns anos o Ministério do Meio Ambiente apontava uma perda de 90 milhões de toneladas anuais de solo fértil por ano no Cerrado, por causa de erosão; no Rio Grande do Sul, 80 milhões/ano; no País todo, 1 bilhão de toneladas anuais.
É possível que o plantio direto nas lavouras de grãos tenha reduzido esses números, mas eles ainda são altos. E a área de pastagens degradadas é enorme: em Goiás, na última negociação com o Fundo do Centro-Oeste, foram apontados 70% das pastagens em algum estágio de degradação.
No mundo, estima-se que a perda seja de 23 bilhões de toneladas anuais de solo. E leva 30 anos para o solo em descanso recompor uma polegada de terra fértil.
Enquanto tudo isso acontece, ganha mais corpo uma discussão que ao longo das últimas décadas se desenvolveu timidamente, confinada quase apenas a áreas ditas ¨ambientalistas¨.
Um dos primeiros a expô-la foi o biólogo Paul R. Ehrlich, da Universidade de Stanford, na Califórnia - segundo quem o problema da relação do ser humano com seu meio físico e com as espécies das quais depende só terá encaminhamento com o que chama de ¨recuperação do sagrado¨, quando nossa espécie reconhecer o direito à vida de todas as espécies, independentemente de sua utilidade para os humanos (como alimentos ou materiais).
Diz ele (Biodiversidade, Editora Nova Fronteira, 1997) que ¨a causa básica da decomposição da diversidade orgânica não é a exploração ou a maldade humana, mas a destruição de hábitats que resulta da expansão das populações humanas e suas atividades¨.
Para ele, ¨muitos desses organismos que o Homo sapiens está destruindo são mais importantes para o futuro da humanidade do que a maioria das espécies sabidamente em perigo de extinção; as pessoas precisam mais de plantas e insetos do que precisam de leopardos e baleias (sem querer com isso menosprezar o valor dos dois últimos)¨.
Seu prognóstico: ¨A extrapolação das tendências atuais na redução da biodiversidade implica um desfecho para a civilização dentro dos próximos cem anos.¨ E o único caminho para reverter esse quadro ¨talvez seja uma transformação quase religiosa, que leve à apreciação da diversidade por si própria, independentemente de seus benefícios diretos para a humanidade¨.
É o mesmo caminho proposto pelo coordenador da obra, o biólogo Edward O. Wilson, em outro livro - A Criação, Companhia das Letras, 2007) - já comentado neste espaço.
Wilson acha que a única possibilidade de mudança rápida no padrão civilizatório, capaz de rever os rumos, está numa aliança entre a ciência e a religião.
Pois não é que o Equador está discutindo incluir em sua Constituição os ¨direitos da natureza¨?
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*Washington Novaes é jornalista - E-mail: wlrnovaes@uol.com.br