O reconhecimento jurídico das comunidades quilombolas 30/07/2008
- César Augusto Baldi*
No Diário Eletrônico do Tribunal Regional Federal da 4ª Região sai publicado, nesta quarta-feira (30/7), o acórdão do processo 2008.04.00.010160-5/PR, envolvendo, de um lado, os interesses da comunidade Paiol da Telha, representados pelo Incra (responsável por eventual futura desapropriação) e, de outro, uma cooperativa agrícola do Estado do Paraná. Trata-se, no caso, de uma das inúmeras comunidades auto-intituladas quilombolas (estimam-se mais de mil em 24 estados brasileiros), em busca de reconhecimento jurídico e, pois, de garantia de seus direitos culturais, sociais e territoriais.
No dizer da comunidade — e que não é contestado pela parte adversa — as terras teriam sido doadas por herança de Dona Balbina, no longínquo ano de 1864. Teriam sido vendidas (livremente, no entender da cooperativa) a agricultores de origem alemã, nos idos de 1970, que, por sua vez, ajuizaram ação de usucapião e teriam reconhecido, judicialmente, seu título e a posse mansa e pacífica.
A questão está sub judice e, portanto, tais considerações são apenas ilustrativas do pano de fundo envolvido no processo. Importa, contudo, tecer considerações a partir de pontos colocados nos votos majoritários.
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Primeiro, porque o processo destaca a necessidade de revisão, no meio jurídico, da noção de quilombo, que já foi objeto de profundo redimensionamento pela historiografia e pela antropologia. O conceito, pois, não pode ser entendido sem beber nas fontes das duas ciências. E estas demonstram que a definição colonial do regramento do Conselho Ultramarino de 1740 — “habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele” — não tinha validade prática nem no período imperial.
Variavam, aliás, profundamente, as diversas comunidades negras (em sua maioria rurais), tanto étnica, quanto socialmente, sem excluir, inclusive, a realidade de coexistirem, simultaneamente, na Casa Grande, em decorrência da decadência da plantação de algodão e de açúcar (o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, primeira comunidade reconhecida pelo governo federal, localizado cem metros da Casa Grande, é paradigmático). Assim, a idéia de uma comunidade sem qualquer relação com a sociedade englobante é absolutamente destoante da realidade brasileira.
Segundo, porque implica a necessidade de reconhecer a diversidade étnico-cultural e socioambiental brasileira, num contexto constitucional de preservação do patrimônio imaterial, de reconhecimento da formação cultural diversificada (em que negros e índios são estruturantes) e de distintas formas de conhecimento ambiental. Mais ainda: obriga a rever a idéia de que a preservação ambiental se dá somente quando inexiste presença humana. Não à toa, 75% da biodiversidade se encontram em terras indígenas e de comunidades ditas tradicionais: o respeito à biodiversidade se faz, também, com a preservação da sociodiversidade. As plantas medicinais utilizadas pelas comunidades de Oriximiná (PA), por exemplo, estão sendo objeto de pesquisa pela UFRJ — não se olvide que as comunidades quilombolas são, legalmente, pela internalização da Convenção da Diversidade Biológica, depositárias de conhecimento tradicional associado.
Terceiro, estabelece um repensar do conceito de comunidade tradicional existente na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, rompendo com:
a) o pensamento eurocêntrico que parte do pressuposto de que o conhecimento tradicional associado (e toda a fitoterapia relacionada), as cosmologias étnicas, a associação com a presença indígena ou negra, a especificidade cultural, o manejo sustentável da economia são símbolos de que tais saberes, temporalidades, diferenças e escalas são inferiores e, portanto, devem manter-se ignorados, silenciados, eliminados e/ou condenados à inexistência ou irrelevância;
b) o etnocentrismo, que entende as culturas como atemporais — ou quando distintas, como presas ao passado — e, portanto, impossíveis de serem alteradas. As comunidades tradicionais — das quais os quilombolas, faxinalenses e ribeirinhos são exemplos — não são representantes de um passado, nem vestígio, nem meros remanescentes: são parte da estrutura agrária do presente e tão modernas e contemporâneas quanto os agricultores que utilizam transgênicos ou os pesquisadores de células-tronco.
Mais que isto: a insistência no critério de auto-definição (como previsto na Convenção 169 da OIT) é outro elemento questionador do etnocentrismo da sociedade — os critérios de classificação social são, em geral, fruto de heterodefinição (de que negro e homossexual são casos clássicos).
Quarto, porque a noção de territorialidade como espaço de reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica põe em xeque a visão tradicional que associa terra e pura utilidade econômica. São comunidades a reivindicar o pleno exercício dos direitos culturais (art. 215, CF), no qual o seu território é elemento essencial. Como bem destaca Boaventura Santos, aqui a temporalidade é distinta das lutas de indígenas e de sem-terras: a terra está ligada ao tempo largo da escravidão, ao passo que na primeira, à colonização e na última, ao momento atual de concentração fundiária.
Quinto, porque recoloca a discussão da imensa concentração fundiária do país, cujo caráter étnico de discriminação ficara oculto, porque a abolição deu por encerrado o problema do negro, excluindo-se dos textos legais e constitucionais qualquer referência a quilombos, que só reaparecem cem anos depois, na Constituição de 1988. A Lei de Terras de 1850, porém, somente permitira aquisição de terras por meio da compra, evitando que estas fossem adquiridas por índios ou pelos negros que estavam sendo libertos, o que ocasionou um sistema informal de registros, simultâneo à grilagem e à concentração de terras em mãos de poucos proprietários.
Assim, vão ser encontradas, ocupadas por comunidades predominante negras, terras de índios (doadas em função de serviços prestados ao Exército Nacional), terras de pretos (doações de ex-proprietários de escravos), terras de santo, porque repassadas para determinada santidade ou congregação religiosa (por exemplo: Santa Teresa) e tantas outras denominações.
A ausência de registros formais e a própria característica da posse e propriedade são singulares e, em alguns casos, tais territórios são hoje alvo de disputa com as Forças Armadas, com alegações de preservação de segurança nacional, de que são exemplos Alcântara (MA), onde existe base de lançamento de foguetes, e Marambaia (RJ), que é sede naval. O que coloca duas outras questões:
a) uma social, no sentido de que estas terras representam cerca de um quarto do território nacional, o que implica a possibilidade de proliferação de conflitos fundiários, num contexto de valorização econômica de terras;
b) e outra, epistemológica, no que diz respeito ao privilégio, nestes casos, à história oral, em evidente contraposição à visão eurocentrada de escrita. São depoimentos, lembranças, relatos e vivências colocados dentro de processos administrativos e judiciais a justificar a territorialidade, a ancestralidade, a convivência em comunidade, os laços de parentesco, as formas de religiosidade, as disposições de utilização da propriedade.
Sexto, porque se trata do reconhecimento do patrimônio cultural como manifestação de modos de “criar, fazer e viver” (art. 216, II, CF), rompendo com a visão monumentalista ou arqueológica. A preservação do patrimônio cultural é muito mais uma questão de presente, não somente de tombamento, documentação antiga, registros ou inventários (art. 216, §1º). E isto tem sido objeto de pouca atenção dos doutrinadores.
Sétimo, porque, para além da necessidade de regularização fundiária (e reavaliação da função social do registro público), se trata, também, de repensar institutos do direito:
a) desapropriação, agora mecanismo urbanístico e de preservação do patrimônio cultural (art. 216, § 1º, CF) e, portanto, a possibilidade de retirada de bens do domínio privado com afetação a determinado fim, sem necessidade de transferência direta ao patrimônio público;
b) a utilização de zonas especiais de interesse social (ou cultural), aliás, constantes do Estatuto da Cidade e que vêm sendo aproveitadas por alguns municípios (Porto Alegre, com o quilombo da Família Silva, no Rio Grande do Sul, é um dos exemplos disponíveis).
Oitavo, porque a utilização coletiva do espaço territorial, sem delimitação certa de domínio particular, com possibilidade de alteração de limites físicos dentro do espaço de reprodução sócio-cultural põe a necessidade de uma proteção específica de tais espaços, com titulação coletiva, pro indiviso e com cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, a salvo, pois, da especulação imobiliária.
O que reforça a opção de zonas especiais de interesse cultural, bem como a atuação conjunta de municípios (o quilombo Kalunga, em Goiás, está localizado, simultaneamente, em área de três municípios).
Nono, porque o Brasil já foi alertado, por inúmeros relatórios internacionais, da premência da necessidade de garantir os direitos das comunidades envolvidas, de titular as propriedades na forma do artigo 68-ADCT, de atenção especial ao direito de moradia e às condições étnicas específicas destas comunidades e da expropriação das terras de quilombolas por mineradoras e outras empresas comerciais (como se verifica nas ações de despejo envolvendo a comunidade Mata Cavalo, de Mato Grosso, ou mesmo a disputa dos quilombos de Sapê do Norte, no Espírito Santo, com a empresa Aracruz). E, no momento presente, com mais razão ainda:
a) o governo federal procura alterar uma instrução normativa do Incra criando maiores obstáculos à feitura de laudos antropológicos (que deveriam ser mais objetivos) e ao próprio desenrolar do procedimento administrativo de demarcação dos territórios;
b) em breve, o Brasil deve informar o cumprimento da Convenção 169 da OIT em relação a indígenas e quilombolas ( correndo o risco de novas recomendações internacionais);
c) existe um importante precedente favorável a tais comunidades.
Em novembro de 2007, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em processo envolvendo a comunidade Saramaka (negros descendentes de escravos) e o governo do Suriname (que não é signatário da Convenção 169, mas que assinou os pactos de direitos econômicos, sociais e culturais), entendeu que:
a) as características específicas culturais, econômicas e sociais, distintas da comunidade nacional, colocavam os “saramakas” ao abrigo do artigo 21 da Convenção Americana de proteção do “direito de integrantes de povos tribais ao uso e gozo de sua propriedade comunal”;
b) tanto a propriedade privada de particulares quando a propriedade comunitária de membros de comunidades indígenas e tradicionais tinham a proteção da Convenção;
c) a legislação interna do Suriname não havia estabelecido proteção especial a tais comunidades (o Brasil, por seu turno, tem o artigo 68-ADCT);
d) um tratamento especial de tais comunidades não implicaria discriminação não permitida, sendo necessárias ações afirmativas;
e) a mera possibilidade de reconhecimento judicial não era substituto de um reconhecimento real de tais direitos;
f) a especial relação de tais comunidades com o território não se restringia a aldeias, assentamentos e parcelas agrícolas, mas sim ao território em seu conjunto, havendo uma íntima conexão entre território e recursos naturais necessários para sobrevivência física e cultural;
g) a necessidade de consulta prévia, de boa-fé e informada, sobre medidas que possam ser prejudiciais às comunidades envolvidas;
h) era dever do Estado a procura de instrumentos jurídicos hábeis para, independentemente da personalidade jurídica da comunidade, propiciar o reconhecimento do direito de propriedade, em conformidade com o seu sistema comunal.
Os votos majoritários do acórdão agora publicado explicitaram, em parte, a necessidade de consulta e oitiva da comunidade envolvida, bem como a obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público no feito (porque envolvidas minorias étnicas). E afirmam a conveniência de um tradutor cultural, um profissional — da área das ciências sociais, podendo ser um antropólogo — capaz de fazer compreender ao juiz e às demais partes do processo o contexto sócio-político e cultural daquele grupo, um responsável, pois, pelo diálogo intercultural, tornando inteligíveis as demandas e especificidades, evitando que o ¨sistema judicial ignore a diversidade e aplique o direito sempre do ponto de vista étnico dominante¨ (Ela Wiecko Castilho).
Esta, aliás, é uma hipótese também reconhecida na referida Convenção 169 (art. 12), ao prever sejam ¨adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes¨.
Por fim, isto tudo repõe a discussão, presente no Direito Internacional desde Durban, sobre a justiça histórica, que, longe de estar associada ao passado, é o reconhecimento de que o colonialismo continuou produzindo efeitos mesmo depois de oficialmente abolido — não à toa o voto vencido cita um comentarista da Constituição imperial. São os direito à memória, direito à verdade e as reparações, e as formas que estas podem ou não ser realizadas. E obriga, por sua vez, as Escolas de Magistratura e do Ministério Público a repensar o tipo de profissional necessário para enfrentar estas questões, típicas de uma sociedade intercultural e pluriétnica.
A discussão jurídica relativamente às formas de desapropriação e à própria constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 (que regula o procedimento de reconhecimento das comunidades quilombolas) ainda se encontra pendente de apreciação pelo STF, em Ação Direta de Inconstitucionalidade não julgada, mas o acórdão coloca questões que merecem ser melhor discutidas e apreciadas, à luz do direito internacional de Direitos Humanos, do direito comparado (as Constituições da Colômbia, Nicarágua e Equador também reconhecem direitos às comunidades negras descendentes de escravos) e da própria interpretação da Constituição, que deve dar a máxima efetividade aos direitos fundamentais.
Os desafios em tempos de constitucionalismo intercultural são, portanto, consideráveis, ainda mais quando envolvem aspectos étnico-raciais e questionam, como no caso da disposição transitória (com 20 anos de vigência!), o colonialismo e o racismo que a sociedade brasileira insiste em considerar inexistentes ou findos.
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*César Augusto Baldi é mestre em Direito pela ULBRA-RS, doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e chefe de gabinete no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre)