O que Lula vai fazer na Argentina 03/08/2008
- O Estado de S.Paulo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desembarcará em Buenos Aires, hoje, para tentar, mais uma vez, remendar as fissuras do Mercosul e reafirmar a boa vontade brasileira em relação à Argentina.
Levará empresários para uma grande reunião de negócios, mas não escapará de cobranças pela posição do Brasil nas últimas e infrutíferas negociações da Rodada Doha, em Genebra, quando o País se distanciou de seu maior parceiro sul-americano.
O diário Clarín descreveu a situação como ¨crise bilateral¨.
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O principal assunto entre Lula e a presidente Cristina Kirchner, afirmou o jornal, será a recriação ¨da confiança entre os vizinhos¨. Em outras palavras, o presidente brasileiro será recebido, segundo a imprensa e personalidades entrevistadas nos últimos dias, como quem deve explicações e talvez uma reparação.
O presidente Lula deverá receber a colega argentina para um jantar na embaixada brasileira, hoje à noite, e os assuntos mais delicados serão discutidos, provavelmente, nessa ocasião. Os dois lados tentarão abafar as divergências e dar demonstrações de amizade. Na quinta-feira, o governo argentino autorizou a exportação de 900 mil toneladas de trigo, depois de meses de restrição. A maior parte do produto deverá ser vendida ao Brasil, prejudicado seriamente pela suspensão do fornecimento.
O presidente brasileiro, além de reafirmar os interesses comuns e o empenho na integração regional, deverá mostrar seu apoio à presidente Cristina Kirchner, politicamente enfraquecida depois de perder no Senado o embate de mais de quatro meses com os agricultores. Na disputa, ocasionada por sua iniciativa de aumentar o imposto sobre exportações de soja e trigo, ela perdeu popularidade e apoio no Congresso. A operação prestígio deverá ser completada, na segunda-feira, com a chegada a Buenos Aires do presidente venezuelano, Hugo Chávez.
Poderá haver abraços, brindes e até a identificação de novas oportunidades de negócios durante a visita do presidente Lula. Mas o Mercosul continuará tão frágil quanto antes de sua chegada a Buenos Aires e os motivos de ressentimento e as divergências mais profundas dificilmente serão dissipados.
¨Os empresários brasileiros só querem comprar nossas empresas¨, disse na semana passada uma fonte da União Industrial Argentina à Agência Estado. De fato, ¨o grosso dos investimentos tem sido para aquisições¨, comentou o economista Maurício Claveri, da consultoria Abeceb, citado na reportagem. Para o secretário da Indústria, Fernando Faguio, o desequilíbrio no comércio bilateral - US$ 2,7 bilhões no primeiro semestre - não é sustentável.
Do outro lado, há queixas contra as barreiras comerciais impostas pelos argentinos a produtos brasileiros. Algumas dessas barreiras foram negociadas entre empresários dos dois países, mas sempre com a ameaça de restrições pelo governo argentino. O governo brasileiro raramente interveio, preferindo aceitar sem maior discussão o protecionismo do principal parceiro no Mercosul.
Mas esses problemas não limitam somente a integração regional. Como não há entendimento sequer sobre as condições de comércio no interior do bloco, é muito difícil negociar em nome do Mercosul com parceiros de fora. Não há como discutir acordos comerciais com a União Européia, nem com as grandes potências envolvidas na Rodada Doha, sem a oferta de concessões na área industrial. Desta vez o chanceler Celso Amorim decidiu, de forma surpreendente, descolar-se da Argentina e buscar um entendimento com europeus e americanos, para tentar salvar a negociação global. Depois, segundo afirmou, o Brasil poderia oferecer alguma compensação ao principal parceiro no Mercosul. Na Argentina, falou-se em traição brasileira, embora essa palavra certamente não venha a ser usada diante de Lula.
A incapacidade do Mercosul de negociar em bloco é uma séria restrição à diplomacia comercial do Brasil. Continuará sendo, se houver uma tentativa de retomar as discussões com Estados Unidos e União Européia. E tudo ficará pior, se a admissão da Venezuela no bloco for completada. A Venezuela vetará qualquer acordo entre Mercosul e Estados Unidos, avisou em Genebra, no dia 21, o ministro do Comércio William Contreras. Diante desses problemas, vale a pena manter a união aduaneira do Mercosul? Em algum momento, o governo brasileiro terá de considerar seriamente essa questão.