Oportunidade perdida 06/08/2008
- João Lara Mesquita*
Dia 29 último, o presidente Lula assinou nova medida provisória, transformando a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca em Ministério.
Para anunciar, soltou a verve. E perdeu uma boa chance de ficar calado. Seu discurso atropelou o bom senso. Como assinalou este jornal, no editorial Outro Ministério dispensável (31/7, A3), ¨falando como pescador - como se o hobby o tivesse transformado num especialista em piscicultura¨, Lula lançou o Mais Pesca e Aqüicultura, plano de desenvolvimento sustentável 2008/2011. O projeto visa a dobrar a produção de pescado e gerar mais de 1 milhão de empregos, por meio da construção de novos terminais marítimos; abrir linhas de crédito para implantação de projetos de criação de peixes, mariscos e crustáceos, e para que pescadores possam adquirir novos barcos. Lula disse algumas pérolas que merecem comentários. Por exemplo, ¨chega de estupidez: aquela imensidão do Lago de Itaipu, agora que nós começamos a criar pacu, mesmo assim nos proibiram de colocar lá a tilápia¨.
Proferiu nova impropriedade quando afirmou ser ¨uma vergonha um país com um litoral extenso como o Brasil, e com 190 milhões de habitantes, só produzir 1 milhão de toneladas de pescado por ano, enquanto o Peru, que é bem menor e possui uma população de 27 milhões de habitantes, pesca nove vezes mais, ou seja, 9 milhões de toneladas/ano¨.
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Para finalizar, arrematou: ¨Da mesma forma que a gente faz a reforma agrária na terra, é fazer uma reforma aquária, na água.¨
Presidente, esqueça a reforma, por favor. Nossos mares não suportariam mais esta brutalidade.
Em recente viagem de trabalho ao longo da costa brasileira, quando produzi a série de documentários Mar Sem Fim, para a TV Cultura (90 episódios e dois anos no ar), entrevistei mais de 40 especialistas entre as universidades dos 17 Estados costeiros. Quando eu os questionava sobre os problemas da nossa costa e do nosso mar, muitos causados pelo poder público, uma crítica quase unânime foi: ¨O governo federal e os governos estaduais não nos procuram, não nos ouvem...¨
Ouça o que eles têm a dizer, presidente, e saberá que foi impedido de colocar tilápias no Lago de Itaipu porque a introdução de organismos exóticos, como essa agressiva espécie africana, é a segunda maior causa de perda de biodiversidade no planeta.
Também aprendi que o maior problema para a vida marinha é a poluição causada pelo esgoto não tratado. No mundo inteiro é assim. Diariamente são despejados 2 milhões de toneladas de esgoto nos oceanos. Aqui, no Brasil, ¨60% da população não tem acesso à rede coletora de esgotos, e apenas 20% do esgoto gerado no país recebe algum tipo de tratamento¨ (Atlas de Saneamento do IBGE). A coleta de lixo é menos ruim, embora a pesquisa indique que ¨63,3% dos municípios depositam seus rejeitos em lixões a céu aberto, sem tratamento algum¨. Lembre-se, presidente, das copiosas chuvas deste país tropical.
Elas também caem nos municípios costeiros, onde a densidade média é de 87 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto a média nacional é de 17 habitantes.
Aonde o senhor supõe que o sopão mortal vai parar?
No mar, é claro. Nem por isso seu governo investe em saneamento básico. Em 2004 o montante foi menor que o valor do Aerolula. Este custou para os cofres públicos US$ 46,7 milhões, mas para saneamento básico, no mesmo ano, o senhor destinou apenas R$ 53,6 milhões. Assim não dá. Nem os bagres resistem.
Outra coisa que aprendi é que nossos mares são pobres em biomassa pesqueira, porque cerca de 60% a 70% de nossa costa fica na zona tropical, de águas quentes, pobres em nutrientes. E peixes também têm de se alimentar.
O Peru é uma potência mundial na pesca porque em sua costa ocorre um fenômeno físico chamado ¨ressurgência¨, de proporções gigantescas, um dos maiores no mundo. Ele se caracteriza pelo afloramento de águas profundas, geralmente ricas em nutrientes. O resultado é a alta produtividade pesqueira. Nada tem que ver com o ¨tamanho do país¨, ou a ¨quantidade de seus habitantes¨.
O senhor ainda disse que ¨milhares de toneladas de peixes são desperdiçados porque muitos só se interessam pelo camarão¨. É verdade. O dado preciso, de acordo com a FAO, é que anualmente 20 milhões de toneladas de peixes são devolvidos ao mar, mortos.
Eles são o que os especialistas chamam de ¨fauna acompanhante¨. Peixes que são puxados fora da água, pelas redes de arrasto, muitas delas de camarão, como o senhor falou. Esta modalidade é tão danosa ao ambiente marinho que já há países defendendo na ONU uma moratória. Mas, no Brasil, a pesca de arrasto é praticada até próximo da zona de arrebentação, colada às praias, o que é proibido. E o Ibama, a quem compete fiscalizar, não tem sequer um barco para atuar. Porque o senhor não libera recursos para que o órgão possa cumprir sua função. Caso tenha esquecido, deixe-me lembrá-lo: em 2006 o total das despesas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) equivaleu a 0,13% do Orçamento da União para o mesmo período. Como fiscalizar nossa biodiversidade, continental e marítima, num país desta proporção, com uma marreca dessas?
Pelo mesmo motivo as Unidades de Conservação da zona costeira, onde começa grande parte da cadeia de vida marinha, estão ao deus-dará. Não receberam recursos para indenizar os antigos proprietários, para o plano de manejo, para as equipes e suas necessidades básicas. De acordo com a ONG Conservation International, ¨em 2000 o MMA gastava cerca de 42 reais por hectare de área protegida. Hoje gastam-se 39 reais por hectare, uma redução de 7%¨.
¨Reforma aquária¨? Que tal, antes, fazer a lição de casa?
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*João Lara Mesquita, jornalista, é autor do livro ¨O Basil Visto do Mar Sem Fim¨, publicado pelas editoras Albatroz, Loqui e Terceiro Nome