Antes tarde do que nunca 10/09/2008
- Pedro de Camargo Neto*
Avançar numa negociação multilateral com mais de 150 países é muito difícil. Negociar significa trocar, oferecer algo em troca do que se deseja. A riqueza relativa entre países desenvolvidos e em desenvolvimento é muito discrepante. Os mais pobres precisam oferecer muito, o que acaba significando pouco para o outro lado. Obter um acordo de consenso entre 150 é tarefa complexa.
Os avanços ocorrem porque os interesses internos dos países não são homogêneos. As sociedades se dividem e o negociador, que deve representar o interesse do país, recebe pressões de mais de um lado. O objetivo de um país em desenvolvimento, embora encontre resistência em parte da sociedade do país desenvolvido, também recebe apoios que precisam ser trabalhados.
A dificuldade de avançar na liberalização agrícola é que esses setores dos países desenvolvidos são fortemente organizados, além da questão da segurança alimentar. Avançar exige encontrar parceiros do outro lado, reduzindo o custo do que será oferecido em troca. Catalisar apoios externos exige capacidade de comunicação e organização nos países desenvolvidos.
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Quando iniciamos, em 2001, o desenvolvimento dos contenciosos, do algodão contra os Estados Unidos e do açúcar contra a União Européia (UE), tinha-se em mente a necessidade de caracterizar a iniqüidade do comércio internacional agrícola. O contencioso deveria, além de procurar a obtenção junto ao Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC) de decisão orientando as necessárias mudanças, também auxiliar na comunicação da iniqüidade que as políticas dos países desenvolvidos causavam aos em desenvolvimento.
Um contencioso caracteriza um problema. É mais do que um desejo de mudança. Retrata uma irregularidade em relação ao que foi acordado no passado. É uma interpretação divergente, de um lado, procurando que uma terceira parte isenta ajuíze quem tem razão. Um contencioso é também um forte instrumento de comunicação.
No debate que precedeu a decisão de formalizar o início dos contenciosos, desacreditado por muitos, argumentávamos que criá-los oferecia a oportunidade de expor a iniqüidade com grande capacidade de comunicação. Até mesmo arriscar uma eventual derrota era válido, pois fortaleceria a visão da necessidade de mudanças.
A abertura dos contenciosos realmente ofereceu grande espaço para os reclamos brasileiros. A imprensa internacional posicionou-se a favor do Brasil. Trabalhou para conquistarmos a posição de líder político no comércio agrícola onde já éramos um líder exportador. Amplos setores da sociedade, para não dizer a maioria, dentro dos EUA e da UE, apoiaram o Brasil na necessidade de mudança.
Veio em junho de 2004 o primeiro resultado do painel de arbitragem do contencioso do algodão. Ganhamos até mais do que todos previam. O lado norte-americano recorreu, usando todos os mecanismos protelatórios. Continuamos vencendo. Infelizmente, o governo ignorou a capacidade de comunicação dos contenciosos. Os processos foram administrados discretamente em Genebra, como se estivessem sub judice.
A capacidade de comunicação do vitorioso contencioso foi ignorada. Deixamos de catalisar apoios e trabalhar alianças para o avanço da Rodada Doha. Pior do que isso. No caso do contencioso do algodão, houve um claro acordo com os EUA. Aceitaram o argumento dos EUA de que a Rodada Doha equacionaria os subsídios do algodão. O correto seria usar o resultado do contencioso como instrumento de pressão para a rodada.
Não usaram o resultado do contencioso na reunião ministerial de Hong Kong, em 2005. Algodão não esteve sequer na agenda do Brasil. Os países africanos, nunca procurados pelo Brasil, que haviam optado por uma rota política para solucionar a questão dos subsídios do algodão, foram abandonados. A alavanca que representaria pressionar a questão dos subsídios, fortalecida com uma histórica vitória, foi ignorada.
Novamente, na recente fracassada reunião miniministerial em Genebra, o Brasil não priorizou uma solução para o algodão. Aceitou, equivocadamente, que sua solução não estivesse em igualdade de atenção com os outros temas tratados pelo diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, cuja proposta foi tão rápida e enfaticamente apoiada pelo Brasil.
Não se trata de priorizar um produto, mas sim de compreender que sua solução é instrumento de mudança e comunicação para a questão dos subsídios. Avançar nos subsídios influiria fortemente, também, em avanço em acesso a mercados. A solução para este contencioso, de importância política superior ao conteúdo econômico do produto, poderia ter sido usada pelo Brasil como bandeira para a obtenção do dificílimo consenso.
Com o fracasso de Doha, ou ao menos seu atraso, vemos agora o governo alardear que retaliará os EUA pelo não-cumprimento da decisão da OMC. Realmente, regras acordadas devem ser cumpridas e a retaliação é o mecanismo previsto quando isso não ocorre. Retaliar é obter da OMC autorização para infringir compromissos acordados, prejudicando o comércio com os EUA. Retaliar pode ser obter autorização para aumentar o Imposto de Importação de alguns produtos que o Brasil importa de lá. Pode também ser obter autorização para deixar de pagar royalties por direitos de propriedade intelectual.
Encarecer a importação de produtos norte-americanos acaba prejudicando algum consumidor brasileiro. É também difícil obter o impacto político possível com a alteração de direitos de propriedade intelectual. O desejado é corrigir a iniqüidade do comércio agrícola. Alterar as forças que aprovaram os enormes e ilegais subsídios no Congresso. Para retaliar precisa-se mobilizar forças em outros segmentos, provocando mudanças.
Antes tarde do que nunca. Poderia também usar como título outra expressão popular: melhor, só se for verdade.
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*Pedro de Camargo Neto é presidente da Associação Brasileira de Produtores e Exportadores de Carne Suína (Abipecs)