Etanol, fome e colonialismo 12/09/2008
- O Estado de S.Paulo
O governo brasileiro repudiou, corretamente, a proposta de regulação internacional da produção e do comércio de biocombustíveis, apresentada em Genebra pelo relator das Nações Unidas para Alimentação, o advogado e professor belga Olivier de Schutter.
¨Se o modelo de produção de etanol continuar, violações aos direitos à alimentação vão proliferar¨, disse o relator.
Autor de numerosos livros e artigos sobre direitos humanos, o professor De Schutter escorrega ao tratar de questões de economia, de agricultura e de comércio, além de esquecer a responsabilidade histórica pela pobreza nos países mais afetados pela fome.
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Em seus comentários sobre o etanol, o relator da ONU foi mais severo com os Estados Unidos e a Europa do que com o Brasil, mas isso não torna sua proposta menos alheia aos princípios do comércio internacional e do respeito à política interna de cada país.
O professor De Schutter defende o congelamento da produção de etanol, por meio de regras para controle de novos investimentos. É preciso, segundo ele, avaliar cada nova aplicação de capital no setor, levando em conta seus efeitos ambientais, seu impacto na concentração de terras e nas condições de trabalho e sua influência nos preços dos alimentos. A Organização Mundial do Comércio (OMC) deveria, de acordo com suas idéias, disciplinar o acesso ao mercado internacional com base nesses critérios.
Os comentários do professor De Schutter seriam até engraçados, por sua aparente ingenuidade, se não fossem também perigosos. Brasil e Estados Unidos são grandes exportadores de alimentos e por isso as decisões de plantio de seus agricultores afetam o mercado internacional. Mas nenhum desses países - e isso vale também para Argentina e Austrália - tem a obrigação de alimentar o mundo. Nenhum deles viola nenhum direito ao mudar, de um ano para outro, a composição de suas safras. Só se tornam merecedores de reprimendas quando quebram regras do comércio internacional ou qualquer outro acordo em vigor. Pode-se discutir se Estados Unidos e países da Europa violam suas obrigações internacionais quando concedem aos produtores de etanol subsídios proibidos pelas normas da OMC ou quando os protegem com barreiras ilegais. De resto, não se pode obrigar nenhum país a plantar ou a deixar de plantar qualquer tipo de produto. O professor De Schutter daria uma contribuição efetiva ao combate contra a fome se defendesse o fim dos subsídios e das barreiras comerciais e uma conclusão razoável para a Rodada Doha de negociações comerciais.
Já havia fome em vários países da África e noutras áreas pobres muito antes de se expandir a produção de etanol nas grandes economias agrícolas. A produção de alimentos foi prejudicada nesses países pobres por vários fatores. Um dos mais importantes foram as políticas agrícolas das grandes potências, causadoras de enormes distorções no sistema internacional de preços. Além disso, as políticas de apoio ao desenvolvimento da agricultura nas áreas mais pobres foram um fracasso. Isso foi reconhecido num relatório do Banco Mundial. Seus economistas, no entanto, parecem haver esquecido esse fato, quando resolveram responsabilizar os produtores de etanol pela fome no mundo.
Além do mais, nunca houve de fato escassez de comida, no mercado internacional, nos últimos anos. Houve redução de estoques, mas não falta de alimentos. Os produtos encareceram pressionados por vários fatores, incluídos o crescimento econômico de vários emergentes e a especulação realizada por grandes fundos financeiros do mundo rico. Com a alta de preços, a comida tornou-se inacessível aos muito pobres. Mas sua pobreza era um fato anterior à valorização das matérias-primas.
Muitas dessas populações têm vivido imersas em guerras civis, que as impedem de produzir. Em muitos casos, a instabilidade política e social, especialmente na África, é parte da herança deixada pelas potências coloniais européias. Se o professor Olivier de Schutter, um belga, desse maior atenção a esses detalhes históricos, seria menos propenso, provavelmente, a responsabilizar os produtores de biocombustíveis pela pobreza nas ex-colônias.
É preciso, sim, elevar a disciplina no comércio internacional, mas pela redução de subsídios e barreiras, não pela ingerência nas legítimas decisões econômicas de cada país.