As negociações multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), baseadas no princípio de nação mais favorecida (a redução tarifária oferecida a um país deve ser estendida a todos), são importantes não só porque tratam de temas sistêmicos, como antidumping, mas porque são a única instância em que se pode discutir a redução dos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos. Por essas razões, os acordos bilaterais não são um substituto para o acordo multilateral no âmbito da OMC. Ao contrário, tornam mais complexos os controles alfandegários e introduzem regras discriminatórias que podem distorcer os fluxos de comércio.
Apesar disso, o regionalismo e as negociações de acordos bilaterais se fortaleceram enquanto se arrastavam os entendimentos multilaterais na OMC. Durante os sete anos de negociação de Doha, mais de cem acordos entraram em vigor. Em 2006 foram registrados 16 novos acordos na OMC.
Cerca de 400 acordos regionais e bilaterais devem entrar em vigor em 2010 e 2015. Apenas a Mongólia, um dos 153 países membros da OMC, não fez nenhum acordo paralelo. No dia 28 de agosto, imediatamente após a suspensão das negociações de Doha, a Índia assinou acordo de livre comércio com os dez países (Mianmar, Laos, Tailândia, Camboja, Vietnã, Filipinas, Malásia, Brunei, Cingapura e Indonésia) da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean).
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A União Européia (UE), com metade dos acordos bilaterais em vigor, adota, quando necessário, atitudes pragmáticas, como ocorreu agora com a Comunidade Andina. A fim de contornar as dificuldades de avançar os entendimentos com uma única voz e em vista da posição da Bolívia e do Equador, a UE resolveu levar adiante as negociações de acordos bilaterais com o Peru e a Colômbia.
China e Japão mudaram sua posição tradicional contrária a acordos bilaterais. O Japão já tem acordos com Cingapura, Malásia e Filipinas, além de México e Chile. O mesmo ocorre com a China. Ambos os países estão engajados na formação de um bloco asiático de livre comércio, reunindo 16 países - Asean mais China, Japão, Índia, Coréia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
Algumas idéias contrárias ao livre comércio começaram a prosperar diante da incerteza do futuro das negociações multilaterais. Países asiáticos (Tailândia, Vietnã, Mianmar, Camboja e Laos) estudam formar um cartel do arroz para fixar o preço do produto. Para garantir seu suprimento países importadores de alimentos estão competindo para fechar acordos bilaterais confidenciais com países exportadores desses produtos. Países exportadores de arroz, trigo e soja, como Argentina, Vietnã e Rússia, restringiram suas vendas externas, aumentando a insegurança dos mercados.
Enquanto no mundo real é isso que está ocorrendo, o governo brasileiro apostou todas as suas fichas na Rodada de Doha. Agora, tentando recuperar o tempo perdido, anuncia que pretende engajar-se em negociações bilaterais de abertura de mercado. A UE, os países asiáticos e alguns pequenos países em desenvolvimento formam as prioridades declaradas pelo Itamaraty, com o apoio do setor privado.
O equívoco dessa estratégia de negociação externa do Itamaraty nos últimos seis anos fica evidenciado quando nos deparamos com os desafios que vão ter de ser enfrentados para discutir acordos bilaterais:
A alta competitividade da agricultura brasileira dificultará a negociação de um acordo equilibrado com terceiros países, que relutarão em abrir seus mercados, mesmo em troca de concessões nos setores de bens industriais e de serviços (como deverá ser o caso da negociação com a UE);
a baixa competitividade de alguns setores industriais será um obstáculo à negociação, dada a resistência de alguns setores em aceitar rebaixas tarifárias significativas;
a diferença de atitudes em relação aos acordos bilaterais no âmbito do Mercosul (defensiva da Argentina e ofensiva do Brasil) dificultará a coordenação interna, situação que poderá agravar-se com a entrada da Venezuela;
resistência dos parceiros latino-americanos ao aprofundamento dos acordos bilaterais no âmbito da Aladi pelo temor de invasão dos produtos brasileiros em seus mercados e pela frustração derivada da dificuldade em ampliar a participação de seus produtos no mercado brasileiro;
a proliferação dos acordos bilaterais está criando uma nova agenda ao introduzir novas regras que passarão a reger o comércio internacional nos próximos anos. À margem da OMC, os acordos de livre comércio estão introduzindo normas inovadoras em áreas politicamente sensíveis, como investimentos, concorrência, facilitação de comércio, compras governamentais, propriedade intelectual, comércio eletrônico, trabalho e meio ambiente.
A negociação de acordos comercias, portanto, não há de ser fácil.
As novas regras, como as cláusulas sociais e de meio ambiente, serão questões que o governo brasileiro terá de encarar. As dificuldades de negociação no âmbito do Mercosul, mais cedo ou mais tarde, terão de ser enfrentadas com o mesmo pragmatismo da UE, que mudou de posição e decidiu negociar individualmente com Peru e Colômbia.
O Brasil não pode ficar à margem das negociações para a abertura de mercado a seus produtos agrícolas, industriais e de serviços, sobretudo levando em conta as transformações por que passa o mundo e mais ainda, agora, diante da desaceleração econômica derivada da crise financeira. Uma estreita parceria governo-setor privado facilitará a defesa de nossos interesses concretos nessas negociações.
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*Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp