O calote do Equador 25/11/2008
- O Estado de S.Paulo
O presidente Rafael Correa, do Equador, padece de uma forma particularmente virulenta da doença infantil do populismo - aquela que leva seu portador a considerar ilegais e ilegítimos todos os empréstimos tomados por seu país, nos tempos em que ele ainda não havia assumido o poder para redimir o seu rebanho. No Brasil, durante mais de duas décadas, o PT e alguns partidos de esquerda pregaram o calote, a pretexto de sanear finanças viciadas e moralizar costumes degradados pela dívida externa. Felizmente, quando o PT chegou ao poder pelas mãos do presidente Lula, prevaleceu o bom senso deste e o assunto foi prudentemente esquecido.
Com o presidente Rafael Correa foi diferente. Candidato, ele satanizou a forma como o Equador se endividou. Presidente, constituiu uma comissão para auditar a dívida externa, contraída entre 1976 e 2006, tomando o cuidado de escolher pessoas politicamente comprometidas para examinar uma questão eminentemente técnica, dos pontos de vista financeiro e jurídico. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi que a comissão descobriu ter havido uma imensa conspiração entre organismos multilaterais, bancos com atuação internacional e autoridades equatorianas - de todos os governos, destes últimos 30 anos - para afogar o país numa dívida que hoje chega a US$ 10 bilhões.
De posse do relatório da comissão, Rafael Correa mandou formar uma rede de rádio e televisão e anunciou, primeiro, uma moratória técnica de 30 dias, suspendendo o pagamento dos juros dos bônus Global 2012, no valor de US$ 30,6 milhões, enquanto decide que medidas legais tomará em relação ao restante da dívida. A ameaça é estender a moratória a toda a dívida. Em segundo lugar, anunciou que estava recorrendo à Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional para não pagar um empréstimo de US$ 286,8 milhões contraído pela estatal equatoriana de energia com o BNDES para que a Odebrecht pudesse construir a Hidrelétrica de San Francisco.
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Já afirmamos nesta página que, ao expulsar a Odebrecht e Furnas do Equador, ameaçando, ao mesmo tempo, não pagar o BNDES, Rafael Correa queria fazer o melhor negócio do mundo: ficar com a usina - que, depois de feitos os consertos necessários, funciona a plena carga - sem pagar o saldo do financiamento, que não é pequeno. Na verdade, ele quer mais. Pretende dar o calote em todos os credores do Equador. E, assim como pouco se abalou com a reação do governo brasileiro, que tardou, mas veio na forma da chamada a Brasília do seu embaixador em Quito, não teme a reação da comunidade financeira internacional, pois, como altos funcionários equatorianos disseram, a Venezuela do caudilho Hugo Chávez está aí, para fornecer os dólares que os bancos internacionais deixarão de enviar ao país.
Rafael Correa especializa-se em armações. Criou, no caso da Usina de San Francisco, que hoje fornece cerca de 10% da eletricidade consumida no país, um incidente que poderia ser resolvido - como de fato foi - por meio de negociação, sem que fosse transformado em dissídio diplomático. Agora, acusa a comunidade financeira internacional das piores vilanias, como se não soubesse que em 2000, com o Equador mergulhado na recessão e com uma inflação estratosférica, os bancos aceitaram trocar títulos Brady e eurobônus no valor de US$ 6,964 bilhões por títulos do Tesouro, no valor de US$ 3,750 bilhões, espichando o vencimento em até 30 anos.
O feitiço pode se voltar contra o aprendiz de feiticeiro. Se ampliar a moratória, Rafael Correa deve se preparar para a reação dos credores lesados, que podem arrestar os depósitos no exterior do Banco Central do Equador e os carregamentos de petróleo que constituem a maior receita do país. Verá como custa caro a aventura da moratória.
Com o Brasil, o insulto também não sairá barato. As relações diplomáticas estão comprometidas e podem eventualmente ser rompidas. Quando a Odebrecht foi expulsa, o presidente Lula mandou cancelar a ida a Quito de uma missão ministerial que negociaria projetos de integração regional, inclusive uma estrada ligando Manaus a Manta, no Pacífico. Agora, o governo brasileiro revê todos os itens do relacionamento bilateral, que inclui cooperação nas áreas de saúde, educação, meio ambiente e energia. Brasília finalmente parece ter compreendido que não se pode ter sócios dessa espécie.