Aculturação e integração 08/12/2008
- Denis Lerrer Rosenfield*
A homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, de forma contínua ou descontínua, coloca um problema de ordem cultural e histórica, que concerne ao processo de formação de nosso próprio país. Na verdade, duas abordagens se defrontam: a da demarcação contínua, procurando fechar esse território como nação, numa economia de auto-subsistência; e a da demarcação descontínua, mantendo o intercâmbio entre as populações indígena, mestiça e branca.
A primeira parte do pressuposto de que a política indigenista deveria consistir em manter os indígenas separados dos demais brasileiros, como se fosse possível voltar a um estágio pré-cabraliano de existência e imune à atração que o mundo civilizado exerce sobre eles. Segundo ela, os indígenas são brasileiros de segunda categoria, que deveriam ser mantidos sob tutela, como se fossem incapazes de decidir por si mesmos. Recusa, na verdade, toda a história brasileira de aculturação e de assimilação das tribos indígenas, em processos que remontam, conforme as tribos, ao século 17. É como se a história brasileira não devesse ter existido.
A segunda parte da posição de que as tribos indígenas em geral e, em particular, as da Raposa Serra do Sol estão em processo acentuado de aculturação e assimilação, com casamentos mistos e famílias nucleares que se constituem desta maneira. Adotaram as religiões católica, protestante e evangélica, num exemplo claro de transformação de suas religiosidades originárias. A própria advogada de origem indígena presente no anterior julgamento do Supremo mostra o êxito dessa aculturação. A economia da região é também o reflexo dessa integração, com indígenas que reivindicam liberdade de escolha, e não uma nova forma de tutela, como se uma economia de auto-subsistência ainda fosse possível.
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Processos de aculturação decorrem de vários fatores, desde os que podem, a nossos olhos, parecer anódinos, como vestimentas, até modificações religiosas, que alteram profundamente o modo como um povo se representa e se sente, transformando profundamente a idéia que tem de si. A introdução de novas técnicas e tecnologias, como o machado de ferro em tempos mais remotos ou automóveis e celulares hoje, tem a propriedade de transformar as relações vigentes em determinada tribo. Muda, assim, o seu comportamento com outros agrupamentos humanos, como sertanejos, caboclos, mestiços e brancos.
Tais elementos modificam a forma não apenas de trabalhar, mas de pensar, sentir e representar. Outros elementos igualmente poderosos são a indumentária, o dinheiro, a língua, a escola e a religião, que solapam os fundamentos mesmos dessas culturas indígenas. Observe-se que se trata da introdução de fatores que são inevitáveis em toda relação que se estabeleça com a moderna civilização brasileira, não podendo, na verdade, ser barrados por uma política indigenista. O que, sim, pode ela fazer é minimizar os seus efeitos do ponto de vista social, o que significa dizer do ponto de vista de uma melhor e mais humana integração dessas tribos à sociedade brasileira.
Vários pensadores e etnólogos se dedicaram a essa questão, com rigor científico e uma visão de integração dos indígenas à sociedade brasileira: Karl von den Steinen, Herbert Baldus, Eduardo Galvão, Egon Schaden e Darcy Ribeiro, entre outros. Eram etnólogos com profunda visão humanista, e não ideólogos que advogavam por um suposto retorno a uma situação idílica e falsa de um estado de natureza bom e harmônico. Seguiam a ciência, e não a religião, como ocorre hoje com a política do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a orientação correlata da Funai.
Neste sentido, uma política indigenista deveria controlar os efeitos dos processos de aculturação e integração indígenas, fazendo-os ocorrer gradativamente, assegurando políticas sociais e mesmo econômicas, sabendo de antemão que esse processo se apresenta como irreversível. O índio passa a depender de elementos e fatores estranhos - como os produtos do mundo civilizado - sem ter, muitas vezes, os meios próprios de compreender como são feitos e podem ser adquiridos. Em todo caso, o fascínio é irreversível e se coloca a questão de sua aquisição por meio do trabalho e do comércio, e não de políticas assistencialistas, que só desmerecem e desonram os que são delas beneficiários.
Isso significa que os problemas daí decorrentes são apenas parcialmente fundiários e dizem respeito a um conjunto de políticas sociais e trabalhistas que poderiam ser objeto de intervenção estatal que não se reduzisse a tentar criar condições primitivas de existência que já foram abolidas e às quais o retorno é culturalmente impossível. A demanda, no caso, é por postos de saúde, com enfermeiras, médicos e medicamentos, e não pela volta do pajé. A demanda é por uma educação que, resgatando as tradições indígenas, ofereça a eles a possibilidade de uma boa integração ao mundo civilizado. A demanda não é por ausência de trabalho, mas por condições dignas de trabalho, não tornando o indígena um novo miserável urbano.
A questão consiste numa adaptação eficaz e controlada ao mundo civilizado, de tal maneira que cause a menor dor possível aos indígenas e que estes possam usufruir os produtos da sociedade ocidental, almejados por eles mesmos. Tudo depende, evidentemente, do grau de aculturação em que se encontrem as diferentes tribos, não devendo haver uma regra de conduta única, mas políticas adaptadas a cada situação.
A educação dos jovens, por exemplo, é uma forma de adaptação que se escalona no tempo e propicia, se bem feita, uma integração harmoniosa. Uma interação satisfatória deveria necessariamente contemplar a integração econômica e cultural, condição de novas formas de prestígio, auto-estima e aquisição de bens.
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Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia
na UFRGS E-mail: denisrosenfield@terra.com.br